Monday, June 16, 2014

A virtude dos depravados

Mesmo nas sociedades ocidentais, nos países mais abertos e com população mais esclarecida, há ideias ainda consideradas intocáveis ou superprotegidas. Alguns conceitos estão revestidos de um escudo permanente inquebrável, mesmo tendo um desconhecido fundamento para maioria das pessoas.

Eles chegam a beirar o dogmatismo e moldam comportamentos. A religião, felizmente, deixou de ser inquestionável, embora suas instituições continuem sendo injustificadamente superprotegidas.

A autoridade, a democracia representativa, o voto, o trabalho. Todos superprotegidos e praticamente imaculados. Questioná-los é quase considerado um desvio de caráter. Mas todos merecem análise cuidada. Todos podem ser desconstruídos à luz do que de mais avançado há na ética e na sociologia.

Mas mais do que os conceitos referidos ou que quaisquer outros, há um cuja proteção beira a intolerância e a total irracionalidade, além de ser substancialmente dogmático: o patriotismo.

Alguém já viu o patriotismo ser questionado? Não me refiro a falar mal do país de origem devido a uma crise, à corrupção dos políticos ou a maus resultados desportivos. Estou falando do conceito em si. Da ideia por detrás da palavra.

O patriotismo é uma das maiores aberrações criadas pela humanidade e continua aí, vigorando como se de algo sublime se tratasse. Em nome do patriotismo (nacionalismo, na variante ideológica) foram cometidas as maiores barbaridades ao longo de toda a história. Em nome dele e do provincianismo e bairrismo que despoleta, povos puseram-se uns contra os outros, travaram guerras sangrentas, tentaram justificar dominações, rapinagens e imperialismos. O patriotismo também é alavanca da xenofobia, do racismo e da eugenia.

Como uma ideia tão horrenda e violenta pôde permanecer mesmo nas sociedades mais avançadas como algo louvável, positivo e saudável? Em muitas partes do mundo ainda se mata e se morre por ela. Os países com mais anseios belicistas sequestram seus jovens e dizem-lhes que é motivo de orgulho morrer pela Pátria. Onde não há guerras, questões históricas de conflitos territoriais continuam alimentando rivalidades entre vizinhos. Na Europa podemos senti-las ainda hoje ao longo de todo o continente: Portugal e Espanha, França e Alemanha, Polônia e Lituânia, Hungria e Eslováquia, Itália e Eslovênia, Grécia e Turquia, Estônia e Rússia, Inglaterra e Escócia. E há muito mais. O que dizer da ex-Iugoslávia? Todas remetem a acontecimentos políticos de disputas de povos e territórios, mas ainda hoje suas feridas alimentam reações jingoístas e mesmo que muitas só sejam sentidas em larga escala no contexto desportivo, elas existem e continuam moldando as mentalidades. Pior do que isso é ver a aberração que se tornou a União Europeia. O pressuposto de uma estirpe comum é tão enganador quanto o nome da instituição, que celebra em seu seio um implacável banquete canibal.

Do outro lado do Atlântico, a Sul, há a estúpida guerrinha entre Brasil e Argentina, alimentada pela mídia de ambos os países no contexto futebolístico, mas que o transborda. No Brasil, todo mundo sabe que argentino não presta, que é inimigo. A explicação não vai além da raiva ao Maradona, ao Caniggia ou ao temível Boca Juniors, carrasco de clubes brasileiros na Libertadores da América.

Nos últimos anos os imigrantes bolivianos viraram alvo de xenofobia, enquanto os paraguaios recebem status de povo especialista em contrafação e são sinônimo de tudo o que é falso. Nós, brasileiros, somos nojentamente arrogantes em relação aos nossos vizinhos sul-americanos. Descarregamos neles toda a humilhação que nos é imposta pelos “gringos”.

E é assim mundo afora, aqui e acolá. Quem faz o contraponto ao rebanho jingoísta leva logo com o “argumento” do patriotismo. Dizem que devemos ter orgulho do nosso país, da nossa bandeira, da nossa história. Devemos proteger “os nossos”.

Eu faço questão de ir na contramão dessa ideia perversa. Em primeiríssimo lugar, é absurdo ter orgulho no acaso e o fato de termos nascido neste ou naquele país é fruto do mais puro acaso. Escolhemos onde nascemos? Népia! Em segundo lugar, não há absolutamente NADA para se orgulhar da nossa bandeira e do nosso passado enquanto nação. TODOS os países carregam sangue e terror em seus símbolos nacionais. Todas as bandeiras nacionais deveriam ter a cor vermelha. Nem que fosse apenas um pingo minúsculo. Se querem representar as fundações dos países em trapos coloridos, que o façam coerentemente. Não há países inocentes. Povos edificaram-se sobre outros povos, sempre carregando essa ideia de “nós”, de “nosso”. O país onde nasci, Brasil, tem um passado curto, mas o que há é tão vergonhoso quanto o presente. O caso de Portugal é ainda pior. A pátria lusitana tem uma história imperialista que é, incompreensivelmente, romantizada e glorificada no próprio hino nacional. Retirando toda essa cobertura alegórica, o passado de Portugal é tão bárbaro quanto o III Reich. Sim, é! Não adianta dizerem que não ou se sentirem ofendido com tal comparação. Os portugueses do período imperial rapinaram, chacinaram e escravizaram outros povos. Sim, os portugueses de há séculos fizeram isso, não os de agora. Vejam o lado positivo de aceitarem a realidade, afinal não tiveram nada a ver com aquela barbárie e não têm as mãos sujas de sangue, apenas exaltam símbolos encharcados. O que houve foi um genocídio contra os ameríndios e contra os africanos, que por sua vez se mataram entre si mediante disputas tribais e conflitos territoriais criados pelo imperialismo europeu. Tudo em nome do patriotismo. Do “nós” contra “eles”.

O patriotismo é tão grotesco que separa povos vizinhos para os unir a outros mais distantes. Só assim um catalão pode se sentir mais espanhol que francês. Só assim um trasmontano ou um minhoto podem estar mais próximos de algarvios do que de galegos. O que dizer dos brasileiros que habitam as longínquas fronteiras de toda extensão Norte e Oeste e só têm contato com o centro da cultura dominante brasileira através dos meios de comunicação massificados e estupidificantes?

É claro que há muito mais do que questões territoriais. Há traços culturais, como a língua, evidentemente. Mas mesmo esses traços foram moldados forçosamente no confinamento territorial dos povos e em muitos casos os assemelham muito mais a quem está do outro lado da fronteira do que a quem está noutras regiões de um mesmo quintal com cerca embandeirada, como dizia Raul Seixas. A Península Ibérica é um exemplo perfeito disso. Mas não pretendo adentrar em História. O conceito de patriotismo é o meu alvo e para sentir repulsa dele não precisamos recorrer ao passado, embora este a reforce substancialmente.

O que há de positivo no patriotismo? Como nos enriquece enquanto indivíduos ou mesmo coletivamente? Afinal, quem se beneficia dele além das elites políticas, militares e financeiras? Sim, mesmo as financeiras! Num mundo globalizado é importante que os rebanhos bradem pelos seus pastos. Assim, garante-se o jingoísmo festeiro. De que outra forma se consegue justificar a rapina de tanto dinheiro desviado para mega eventos desportivos? Como o parasitismo das elites seria sustentado? Não apenas monarcas designados pelo divino. Republicanos também. Como manteriam sociedades fortemente verticalizadas sem os lacaios da união nacional? O patriotismo consegue fazer os oprimidos aceitarem sua condição. É a maior garantia de paz social e é para isto que de fato serve. Tão comovente!

Numa Europa em crise, é importante unir os povos em torno de suas bandeirolas contra inimigos comuns estrangeiros. Para diminuir o perigo da aversão às instituições europeias passar às vias de fato, há sempre o apelo patriótico que vê no estrangeiro não europeu um bode expiatório perfeito. Não é por acaso que os períodos de crise despoletam mais xenofobia e mais evidência dos movimentos nacionalistas. Sempre foi assim. O Fascismo e o Nazismo foram alavancados por crises.

O mais curioso é notar a distinção que as pessoas fazem entre nacionalismo e patriotismo, quando o primeiro é apenas a manifestação político-ideológica do segundo. O fundamento teórico de ambos, que são um só, está assente na mesma ideia de Povo, Cultura, Identidade e Nação. Dizem que nem todo patriota é nacionalista. Claro que é! Todo patriota é nacionalista por definição. O que querem dizer é que nem todo patriota transforma o conceito em ideologia política. Felizmente!

Vou aludir a algo bem pessoal para refutar o patriotismo. Formalmente, sou brasileiro. Apesar de já não ter sequer passaporte ou identidade tupiniquim. Sou brasileiro por ter nascido no Brasil e não importa se vivo há quase 15 anos noutro lugar. Sou e sempre serei brasileiro. Assim quis o acaso e devo me orgulhar dele (?). Mas mesmo que nunca tivesse saído do Brasil, são muito mais as coisas que me separam da esmagadora maioria do povo daquele país do que as que de fato me unem a ele. Aliás, a minha repulsa pela sociedade e pela cultura dominante brasileira não é mais fraca do que a minha repulsa pelo patriotismo. O mesmo digo de Portugal, país onde vivi a maior parte da minha vida adulta até então. Os patriotas que me perdoem, mas se há um país com o qual eu me sinto identificado, é a República Checa, mesmo sem assimilar muito bem a cultura desses eslavos e ter problemas com o próprio idioma. Como me identifico? Sei lá! Foi o país que escolhi, acho-o bonito e interessante e isso para mim basta. Se tivesse que escolher entre Brasil, Portugal ou República Tcheca, os dois primeiros explodiriam. Se houvesse uma guerra e me obrigassem a lutar por um dos países contra os outros, eu marcharia em nome de São Nepomuceno. Mentira! Fugiria e deixaria que os lacaios se matassem em nome das elites e seus símbolos nacionais. Em sã consciência, nunca daria a vida por nenhum país. As bandeiras nacionais não valem mais do que meras peças decorativas.

Recordo-me dos meus primeiros esboços antipatrióticos. A Copa do Mundo é um período especialmente irritante no Brasil. Tudo se tinge a verde e amarelo e só se respira futebol. Em 1998, a Copa da França me fez despertar sentimentos inéditos em relação à seleção e ao “meu país”. Lembro-me especialmente do jogo das quartas-de-final entre Brasil e Dinamarca. Eu tinha, desde tenra idade, uma admiração inexplicável pela Dinamarca e pela Checoslováquia (optaria apenas pela República Tcheca após a divisão com a Eslováquia). Eram as minhas seleções de futebol favoritas e eu adorava futebol como ninguém. Respirava-o! Às vésperas do jogo comecei a perguntar-me por que raios deveria torcer pelo Brasil, se preferia a Dinamarca. Adorava o nome do país, dos jogadores e achava o uniforme vermelho muito mais belo. Por mais que quisesse sentir-me fiel à canarinha, meu coração pendia para o lado dinamarquês. E foi o que assumi. No dia do jogo pintei a bandeira dinamarquesa no rosto e sofri com a derrota por 3x2 para a seleção da CBF. Foi a minha primeira demonstração de antipatriotismo. Antes disso, recordo-me de assistir aos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, e vibrar pelas seleções brasileiras de vôlei e basquete perante comentários de reprovação de mãe e tia, que sempre torciam contra, argumentando que um país miserável e corrupto como o Brasil não merecia apoio. Eu não entendia patavinas daquilo, mas talvez a semente tenha ficado.

A partir de então, nunca mais torci pela seleção brasileira. Quando me mudei para Portugal, já simpatizava com o anarquismo (que é a única ideologia que combate o patriotismo) e a minha aversão à pátria passou a incluir também Portugal. O patriotismo português sempre me pareceu mais aberrante que o brasileiro por um motivo simples: enquanto o patriotismo brasileiro carrega uma roupagem festeira e alienante, configurando um puro jingoísmo de massas à deriva, o patriotismo português sempre me pareceu mais sério e carregado de um injustificável orgulho pelos absurdos do passado. Sempre me pareceu ser uma exaltação da raça, da identidade nacional e do imperialismo, termos arrepiantes que me dão náusea.

Desde os primeiros dias como imigrante reneguei o patriotismo português e fui visto como um arrogante ou como um colonizado complexado. As pessoas não compreendem nem aceitam a ideia de alguém estar-se borrifando para a Pátria. Certa vez, num dos grandes protestos contra a invasão do Iraque no Porto, um senhor veio perguntar-me o que significava a bandeira portuguesa cortada com um X no meu casaco. Respondi-lhe, na inocência da juventude, que era uma demonstração contra as fronteiras do mundo. O velhote irritou-se e encheu-me de insultos. Era, muito provavelmente, um membro do Partido Comunista Português. Semanas depois, noutra daquelas manifestações, pus uma bandeira portuguesa no meio da rua para os carros passarem sobre ela. Um dos carros parou à sua frente até que fosse removida dali, numa comovente demonstração de fidelidade a um símbolo nacional que naqueles dias estava sujo de sangue iraquiano.

Como imigrante antipatriota, enfrentei a fúria dos que não aceitam que um estrangeiro negue a sua pátria. Parece senso comum que uma pessoa só possa criticar o seu próprio país e respeitar incondicionalmente os símbolos nacionais dos demais. Eu nunca aceitei essa balela e nunca tive problemas em criticar Portugal para um português ou a República Tcheca para um tcheco. Não é uma questão de desrespeito gratuito. Simplesmente os símbolos nacionais não têm nenhum valor especial para mim e o conceito de patriotismo me dá asco, nojo. Como disse o escritor chileno Luís Sepúlveda, a palavra patriotismo deveria desaparecer do dicionário.

De todas as aberrações geradas pelo sentimento patriótico, talvez a mais detestável seja o apoio incondicional a pessoas conterrâneas, por mais execráveis que possam ser. Quem, em Portugal, não se recorda de Durão Barroso, o famoso cherne? O ex-Primeiro-Ministro português (também ex-maoísta reciclado politicamente a tempo para virar parasita neoliberal e lacaio de Bush) que abandonou um Portugal de “tanga”, como ele mesmo gostava de dizer, para chefiar a Comissão Europeia em Bruxelas com um salário chorudo, era respeitado e exaltado apenas por ser português. Diziam-me que era um orgulho tê-lo à chefia da uma instituição europeia. Orgulho? Como explicar isto? O sujeito encabeçou um governo catastrófico, arrastou Portugal, contra a vontade da população, para um conflito totalmente ilegal ao lado dos EUA, colocando o país na rota do terrorismo islâmico, desfez o governo e fugiu para Bruxelas para ganhar muito dinheiro. Orgulho desse imbecil? Sim, afinal ele é português e isto basta!

Mas é o futebol que gera mais culto irracional à personalidade. Em Portugal há duas pessoas endeusadas: o treinador José Mourinho e o jogador Cristiano Ronaldo. São portugueses e isto basta! Não interessa se o primeiro é um manipulador que joga muito sujo, que cria ruído e confusão por vaidade ou para desestabilizar adversários. Alguém que carrega consigo a máxima “o fim justifica os meios”. Também não interessa que o segundo seja arrogante e egocêntrico inveterado. Mourinho autointitula-se Special One e Ronaldo considera que é alvo de inveja por ser rico, bonito e craque. Também não interessa que vivam suas vidas milionárias no estrangeiro e estejam se borrifando para Portugal. O que interessa é serem portugueses!

Seguindo esta linha de raciocínio (ou falta dele), podemos facilmente concluir que Salazar é um dos símbolos de orgulho do país. Afinal, devido aos quase quarenta anos de ditadura, ele é, até hoje, uma das personagens de Portugal mais famosas no mundo e pouco importa o resto. Caráter? Oh! A nacionalidade o resume.

No Brasil, o maior símbolo patriótico de culto à personalidade é Pelé, o Rei, como é chamado. Pelé é um sujeito absolutamente retrógrado e alinhado a o que há de pior na política e no dirigismo desportivo brasileiro. O próprio Romário, outro simbolo nacional, disse que ele calado era um poeta. Criticar o Rei enquanto pessoa é aceitável, mas sugerir que outro jogador o superou ou o supera é caso patológico. Não se aceita, sob hipótese alguma, que Pelé não seja o melhor jogador de todos os tempos. Ontem, hoje e sempre! Nunca haverá alguém melhor. Pelé é intocável, porque tocar em Pelé é tocar no maior símbolo nacional do país. Assim criam-se os mitos. Como bom antipatriota, faço questão de afirmar que o Rei na verdade é súdito de Messi e Maradona. Sim, justamente os dois argentinos. Muito do que se atribui a Pelé não passa de produto da propaganda patriótica da ditadura militar. Da Pátria de chuteiras, do ame-a ou deixe-a.

Como cidadão do mundo que de fato sou, sem pátria e mesmo sem lar, nego-me a limitar-me a uma ideia tão pequena e medíocre. A minha maior aspiração na vida é atingir a plenitude do multiculturalismo e desfazer-me de vícios e costumes provincianos. Não há nada mais enriquecedor do que sair do próprio mundinho feito de dogmas e tabus e enriquecer-se enquanto indivíduo livre de amarras e convenções sociais limitadoras do ser. O patriotismo é uma amarra que cega e impede o desenvolvimento da autocrítica. Seu antídoto é o internacionalismo e a ideia de que somos cidadãos de um mundo vasto e não podemos estar despojados da sua diversidade em nome de conceitos obsoletos que glorificam infâmias coletivas.

Ao longo da história, poucas pessoas públicas tiveram a coragem de enfrentar o tabu e a superproteção do patriotismo. Se excluirmos os anarquistas, antipatriotas por força da concepção internacionalista do socialismo libertário e da negação da autoridade, encontraremos apenas um pequeno punhado de personagens meio que marginalizadas, embora célebres, como Oscar Wilde, autor daquela que é, provavelmente, a mais famosa frase antipatriótica da história e a quem parafraseio:


O patriotismo é a virtude dos depravados.

Sunday, June 15, 2014

O problema não foi o insulto, mas quem insultou

Não vi os insultos ao vivo. Estava no metrô ainda a caminho de uma "fanzone" na cidade onde moro. Não tinha a menor vontade de ver o jogo de abertura da Copa, só queria mesmo estar na rua com os amigos estrangeiros, enchendo a cara de vinho e provocando (meti-me no meio da massa verde e amarela com uma camisa da Croácia). À noite começaram a pipocar as notícias sobre os xingamentos que a presidente Dilma recebera da torcida dentro do Itaquerão, boa parte delas em tom bem áspero contra o comportamento dos torcedores. Essa é a parte que me espanta: de repente todo mundo virou puritano e moralista. Já não se pode xingar, já não se pode apelar à catarse. Essa crítica veio de pessoas identificadas com a esquerda. A primeira que li foi do jornalista esportivo Juca Kfouri, acusando a elite branca de mal-educada e mal-agradecida. Concordo absolutamente com a segunda acusação, mas a primeira é balela. Caso estivesse no estádio, eu também recorreria a xingamentos. É claro que eu NUNCA estaria no estádio da abertura da Copa, afinal sou branco, mas não sou da elite. Também não estaria porque meu único contributo para esse evento vergonhoso é estar nas fanzones bebendo vinho barato e torcendo para os adversários do Brasil. Já é um contributo excessivo; eu deveria estar foragido nalguma praia deserta durante todo esse mês de pão e circo e jingoísmo alienante. Mas ninguém é perfeito.

Bem, voltemos aos insultos. Eu os compreendo e não os condeno de forma alguma. Só condeno os protagonistas deles. Estamos falando de uma elite que elege Alckmin e Serra, ou seja, consciência política não é o forte dela. O motivo dos insultos não me representa minimamente, nem a mim, nem aos manifestantes que estavam levando porrada da polícia militar nas ruas de São Paulo. O próprio Juca Kfouri, na entrevista ao Roda Viva da TV Cultura, mostrou-se bastante ingênuo ao dizer que as vozes das ruas chegaram aos estádios. Outra balela! As vozes dos estádios são as vozes de quem não vai a protesto, de quem chama manifestante de vagabundo. Essa gente pegou o embalo da indignação popular mas não sabe bem por que motivo o fez. Moda, talvez. Quiseram mostrar-se moderninhos, engajados. Mas essa gente não tem nenhum engajamento político. Foram os mesmos que encheram as manifestações do ano passado com a bandeira do Brasil, tiraram fotos para o Facebook e em seguida desapareceram das ruas. Insultaram Dilma apenas porque representam o velho Brasil, não admitem reformas sociais mínimas e engolem o discurso das Globos e Vejas da vida. A ingenuidade do Juca Kfouri talvez esteja ligada ao seu amor pelo futebol, que o faz ainda tentar encontrar um mínimo de dignidade na Copa do Mundo. É verdade que ele tem a coragem de criticar a organização do evento, mas não diz nada sobre o fanatismo e o exagero à volta do esporte. Ele realmente acha que futebol não é produto de alienação. Mas talvez esperar uma postura ainda mais crítica de alguém que está atrelado a esse meio seja pedir muito, sei lá.

Alguém escreveu no Facebook que havia mais negros na seleção croata do que nas arquibancadas do Itaquerão. É exatamente isso! E recordemos que Itaquera é uma região popular de São Paulo. Mas não é só lá. Todas essas doze novas "arenas" estão recebendo as elites das suas doze cidades e as dos países que participam da Copa. Ontem a Globo falava da festa que o povo colombiano estava fazendo durante a estreia vitoriosa da Colômbia. Ora, ali não estava o "povo", ali estavam os brancos endinheirados do país, os que podem viajar para o Brasil e comprar ingressos caros. Essa Copa é para níveis europeus, não sul-americanos. O Padrão FIFA é um selo de garantia da elitização do evento. O brasileiro comum vai ficar na rua do seu bairro vendo os jogos pela televisão.

Houve um ser iluminado que escreveu que estava sentado ao lado de meia dúzia de negões lá dentro do estádio, como se a utilização da exceção para confirmar a regra fosse um argumento de peso. Escorregou na maionese e nem percebeu, coitado. Deu uma de Pondé.

Os insultos a Dilma não são algo condenável por si só. Vamos lá, companheiros de esquerda, imaginemos o seguinte: estivéssemos todos nós no estádio e FHC ainda fosse o presidente, o que teríamos feito? Eu vomitaria as entranhas e coraria ao rubro de tanto berrar insultos. Não é sempre que temos a oportunidade de enviar recados diretos aos nossos queridos "representantes". Quando a oportunidade aparece é bom que desabafemos mesmo. Muito mais grave do que os insultos a Dilma foi o comportamento dessa elite branca tupiniquim contra outros alvos. Maradona foi hostilizado e saiu furioso do estádio, os croatas foram vaiados e, mais grave, Diego Costa foi perseguido durante todo o jogo da Espanha por ter escolhido jogar pela seleção ibérica em detrimento da brasileira (e não havia nada que o garantisse na convocação de Felipão). Isso sim é uma demonstração de tacanhice, de falta de maturidade, de bairrismo, alienação e intolerância. Além do mais, a hipocrisia dessa elite dos estádios é de dar vergonha alheia. Dona Dilma (e Lula) fez uma Copa Padrão FIFA de bandeja para essa elite mimada e ela ainda reclama? Graças ao PT e seu conluio com a FIFA essa trupe jingoísta de bairros nobres tem a oportunidade de se sentir na Europa sem sair do Brasil e ela ainda fica com mimimi? Se tivessem feito uma Copa popular acessível ao povão, essa elite higienista teria toda a razão em reclamar. Mas não, são uns mal-agradecidos mesmo.

Mas não é só a elite dentro dos estádios. O brasileiro comum não está muito acostumado a lidar com estrangeiros e quando eles dão as caras em grande número vem à tona a falta de fair play. Um argentino teve o dedo quebrado quando passeava por Belo Horizonte com a bandeira do país vizinho e se viu cercado por brasileiros que a tentaram arrancar das suas mãos. Vários assaltos já foram feitos a estrangeiros nos últimos dias e dentre as vítimas estão também jornalistas da imprensa internacional. Já que, afinal, está tendo Copa, que ela seja aproveitada para que as pessoas respeitem mais quem vem de fora e para que se acostumem mais com a diferença. De resto, essa é a Copa mais questionada e impopular da história. É a mais cara e a mais polêmica. O único verdadeiro legado da Copa do Mundo do Brasil são as manifestações e o surgimento de uma cultura de reivindicação que desde Junho de 2013 se materializou em dezenas de novos movimentos sociais. Tem havido demonstrações de solidariedade com protestos anti-FIFA um pouco por todo o mundo. No dia da abertura, a imprensa do mundo inteiro dava mais destaque ao duelo travado nas ruas de inúmeras cidades brasileiras entre manifestantes e polícia do que ao pontapé inicial em si. Foi uma enorme vitória do #NãoVaiTerCopa.

Agora é esperar que a seleção da CBF seja logo eliminada.


Saturday, June 7, 2014

Uma Religião chamada PT


Já há algum tempo que deixei de acreditar que ideologia define caráter. Bem, com algumas óbvias exceções, claro. Parece-me impossível haver um neo-nazista que seja boa pessoa. Mas esse é um caso extremo que se não caracteriza, pelo menos beira a patologia. A minha observação é sobretudo nas ideologias que têm ao menos um mínimo elemento harmônico na sua concepção de vida em sociedade e, dentre elas, pego no espectro político para definir dois campos bem abrangentes: o campo Socialista e o campo Capitalista, por assim dizer. Claro que muita gente torce o nariz para a utilização desses termos, mas eles servem bem para a minha reflexão. Há alguns anos, quando eu era muito apaixonado pelas ideias e pouco maduro, não me restavam dúvidas de que qualquer pessoa que se assumisse como sendo de Direita ou defensora do Capitalismo era, automaticamente, minha inimiga mortal e não merecia mais do que o meu repúdio mais histérico. Por outro lado, quase que como por efeito, qualquer pessoa assumidamente de Esquerda ou Socialista (atenção, não utilizo Esquerda e Socialismo como sinônimos) era, na pior das hipóteses, cheia de boas intenções, e por mais que demonstrasse algumas falhas de caráter, o abono das ideias sempre suavizava qualquer reprovação.

Hoje não penso mais assim. Não sei exatamente o que me fez mudar. Uns dirão que foi a idade, outros dirão que foi a formação acadêmica científica e com apelo à razão. Outros poderão dizer que já não sinto as ideias como dantes, como quando as ia desvendando pouco a pouco. Pode ser, mas não creio. Não me cansei da política e continuo cada vez mais interessado por ela. Depois de refletir um pouco, passei a apostar na hipótese de que o que me transformou numa pessoa politicamente tolerante foi exatamente o meu interesse pela política, ou seja, o meu enorme gosto em debater ideias, em abordar problemáticas, aprofundar pensamentos e, sobretudo, confrontar-me com concepções opostas não apenas para superá-las, mas para aprender com elas. Acho que essa foi a postura mais inteligente que já assumi enquanto indivíduo politizado.

Isso não quer dizer que eu não tenha uma ideologia. Muito pelo contrário. Certa vez, há muito tempo, perguntado pela mãe de um amigo de classe média alta se eu era de esquerda, respondi-lhe, no fervor da juventude, que era anarquista. Eu já sabia muito bem o que o anarquismo significava, já tinha lido algumas coisas de Bakunin e Proudhon e estava tentando convencer-me a mim próprio a não desistir de ler O Capital de Marx (acabei por desistir porque era muito longo e chatíssimo para uma mente de 18 anos). A mãe do meu amigo disse, num contra-ataque fulminante e implacável, que eu ainda era muito novo e que, amadurecendo, esqueceria essa tolice. Hoje, 13 anos depois, já com uma preocupante quantidade de cabelos brancos na cabeça, continuo achando que o anarquismo é a melhor ideia de organização da sociedade já concebida pela mente humana. Não é perfeita, porque, afinal, é humana. Mas é a ideia mais avançada do ponto de vista ético e mais justa do ponto de vista social. Se é viável ou não, creio ser uma questão de tempo e de evolução constante. Ah! Sim, essa é uma das minhas grandes divergências metodológicas com outros anarquistas. Eu não acredito na revolução. Quer dizer, acreditar nela como retórica ou mesmo como pressão social, acredito. Não digo que não considero a revolução necessária. Não é isso. Mas não vejo como uma revolução pode ser viável atualmente. O grande perigo de um processo revolucionário nos dias atuais é ele acabar numa ditadura de interesses diametralmente opostos aos que a provocaram. Sou um reformista? Não! Tenho alergia dessa trupe, até. Mas não me incluo no grupo dos que metodologicamente defendem a revolução aos moldes do século XIX. Vivemos noutro tempo. E temos muito para comemorar, porque se por um lado é verdade que não conseguimos concretizar as nossas revoluções (a perda da mais profunda delas, a espanhola, ainda é muito dolorosa), por outro lado as tentativas de as provocarmos fizeram com que as sociedades avançassem e chegassem ao que temos hoje, que apesar de todos os apesares (e são muitos) é algo muito melhor do que o que existia há cem anos. Evolução! Mas uma evolução só possível pela insistência dos revolucionários mais apressados. É nisso que eu me incluo. Sou um evolucionário. Eu não quero apenas a revolução nas ruas, com violência e destruição da sociedade doente vigente. Eu quero a mudança a partir das mentalidades. Não basta tomarmos as ruas. Precisamos tomar as ruas sabendo o que fazer. Não basta derrubarmos o poder quando toda a estrutura mental da sociedade só está preparada para substituir um poder por outro. Enfim. Esta é uma divagação anarquista que até se abrange às perspectivas da Esquerda em geral, mas não é o meu ponto. O importante era eu dizer que sim, que sou um idealista e não quero convencer a ninguém de que sou neutro ou imparcial, como também ninguém me convencerá do mesmo. Somos todos parciais!

Onde quero chegar? O título do texto não está errado. Quero chegar ao PT, o Partido dos Trabalhadores, que atualmente é o partido que lidera a confusa e heterogênea coligação governista no Brasil. Quando o PT chegou ao poder, eu pensei que somente o melhor do caráter humano poderia ser aproveitado para transformar o Brasil. Também pensei que Lula não fosse se reciclar tanto. Mas tudo bem. Antes com Lula e agora com Dilma, o PT apresentou seus projetos e teve seus méritos. E atenção: eu reconheço as melhoras que o Brasil teve. Elas não são tão grandes quanto os petistas publicitam e nem tão pequenas quanto a oposição vocifera. Houve avanços. Do meu ponto de vista, foram insuficientes, mas eles existiram. O problema é o esgotamento político do PT, o seu esvaziamento ideológico e o seu total (eu diria até pornográfico) compromisso com a conveniência da governância. O PT deixou de governar com base num projeto social e passou a governar como uma máquina burocrática que tem espasmos só de ponderar a possibilidade de perder a posição que ostenta no poder federal. O PT governa para ser governo. E governa para seus padrinhos, para seus patrocinadores. Isto é o PT; um partido como todos os outros. Há gente boa e bem intencionada lá dentro? Há! Como há em quase todos os partidos. Nos de direita também. É razoável pensar que o caráter é cultivado à direita tanto quanto à esquerda. As ideias são outra coisa. "Outros quinhentos", como se diz na gíria.

Qual é, afinal, o meu problema com o PT? Bem, meu problema é bem mais com a base petista. Do PT eu não espero mais do que o que eu espero dos outros partidos grandes. O PT está longe de ser socialista e mais ainda de ser comunista. O PT gere um país capitalista que, durante a última década, tentou (graças ao PT) implantar uma tímida social-democracia. Bem mais tímida do que a social-democracia dos países europeus, muitos dos quais governados por partidos de direita, diga-se. Ah! Sim, atualmente é complicado falar de Welfare State na Europa devido ao advento da crise. Mas acho que deu para perceber onde quero chegar.

O problema está na base petista. Ou pelo menos em parte dela. Quando eu vejo pessoas mentindo descaradamente e com orgulho, eu sinto que há algo muito errado. A mentira é menos grave por ser uma mentira de esquerda? Quando eu vejo gente que se diz "socialista" gritar em favor do bastão da polícia contra manifestantes de movimentos sociais, parece-me haver uma distorção enorme na cabeça dessas pessoas. Quando eu vejo gente de esquerda que sofreu com a ditadura militar dizendo agora que "quem não gosta do Brasil que se mude para outro país", eu fico com muita raiva. Para quem não sabe, "Brasil, ame-o ou deixe-o" foi talvez o lema mais simbólico da ditadura dos generais. O que há com essa gente?

O comportamento de muitos petistas tem sido o mesmo de um adepto de um clube de futebol ou de um fanático religioso. O PT se transformou, para eles, numa religião. Tudo o que o PT diz é verdade. A verdade só pertence ao PT e a oposição, seja de direita, seja de esquerda, é mentirosa, rancorosa, canalha, "coxinha", antipatriota. Qualquer notícia desfavorável ao PT é mentira produzida pela mídia golpista de direita ou dos arruaceiros mascarados. Qualquer estatística tirada do site do PT ou do governo federal é verdade absoluta. Quer saber a verdade? Quer ser bem informado? Beba na fonte do PT, lá está tudo o que você precisa saber. Aliás, esses petistas não gostam dos EUA e dos políticos de lá, mas quando um deles aparece dizendo algo minimamente favorável sobre o Brasil atual, eles nos inundam com suas referências à notícia, pois até a pessoa menos credível passa a ter credibilidade automática quando elogia o PT.

O fanatismo religioso ao PT atinge o nível da vergonha alheia. Eu vejo gente que sempre foi a favor da liberalização das drogas fazendo campanha ad hominem contra uma das principais figuras da oposição nos seguintes termos: "Como? Um candidato envolvido com cocaína até às narinas pode ser presidente da república? Fora tucanalhas!". Quer dizer que esse pessoal faz propaganda pela marijuana, fuma seus baseados com orgulho, não se preocupa com os porres etílicos de Lula, mas se torna o maior moralista quando alguém da oposição faz, presumivelmente, o mesmo uso que eles fazem da alucinogenia? É que uma coisa é acusar Aécio Neves de estar ligado ao tráfico, outra coisa é condená-lo pelo uso de drogas. Para esses petistas, suas bandeiras só são hasteadas quando lhes convêm. Quando o vento sopra do outro lado, elas são recolhidas.

E a Copa do Mundo? Há uns anos, o típico militante petista era moderadamente averso aos exageros futebolísticos. Hoje, há essa trupe que coloca a seleção brasileira acima dos movimentos sociais e a Copa do Mundo acima das reivindicações populares. E passam isso na cara dos outros com orgulho! Falam da seleção com comoção. Nunca gostaram tanto de futebol como agora. Se, por acaso, a Copa tivesse sido um projeto do PSDB, esses petistas seriam os maiores opositores ao evento e estariam nas ruas acusando os tucanos de desviar dinheiro para projetos desportivos megalômanos enquanto deixam os serviços básicos sucateados. É que só o PT pode! E consideram a Copa do Mundo uma genialidade de Lula, quando os países mais ricos se afastaram oportunamente desses megaeventos (quando a crise econômica deu as caras) e os relegaram aos ingênuos com manias de grandeza (depois do Brasil será a vez da Rússia e do Catar, saindo totalmente da rota tradicional). A Copa do Mundo sofreu o mesmo fenômeno das fábricas: foi deslocada para países com governos mais corruptos e direitos laborais mais flexíveis.

E quando criticam a bancada evangélica? Sim, aquela bancada asquerosa, nojenta, execrável e repugnante formada por mentes teocráticas e totalitárias. Não estou sendo irônico! Considero-os mesmo isto tudo. Os evangélicos envolvidos na política são uma das maiores ameaças à sociedade brasileira. Mas esses tais petistas criticam-na pelo seu fanatismo enquanto reproduzem exatamente o mesmo. A diferença é que em vez do culto a Jesus fazem culto a Lula, a Dilma e ao partidão. O partidão que tudo pode. O partidão que está acima da lei, da moral, da ética, da verdade e do questionamento.

O que dizer dessa gente? Onde está o seu caráter quando mentem com orgulho, quando se negam ao debate polido, quando rejeitam arrogantemente a autocrítica, quando adotam a postura daqueles que eles próprios criticam para se armarem no embate político, quando varrem para debaixo do tapete todos os problemas internos das suas fileiras, quando se limitam aos ataques ad hominem, às falácias e às conclusões superficiais repletas de lugar comum e clichê? Onde está o caráter de quem atropela o bom senso e simplesmente ignora os avisos de que está alimentando equívocos ou inverdades? Onde está o caráter dos que colocam o partido acima da concertação social e dos interesses do país?

Quando eu assumi uma postura mais racional e menos emocional na abordagem política, algo me veio à tona como sendo da mais elevada importância: a autocrítica. Sem autocrítica dificilmente encontramos um caráter saudável. Sem autocrítica, ideologias, partidos ou indivíduos não evoluem e não criam discernimento. A autocrítica é o que falta a esses petistas para recuperarem o caráter perdido. Se é que alguma vez o tiveram.


Ideologia ou partido não define caráter. Esta é uma das maiores lições da política. A outra, a ser aprendida por todos, é desenvolvermos um compromisso íntimo connosco próprios. Esse compromisso passa, inevitavelmente, pela autocrítica. Quem tiver coragem de fazê-la terá o meu respeito por mais distante que esteja de mim ideologicamente. E os meus "camaradas" que não a fizeram dificilmente terão a minha confiança ou serão levados a sério. 

Wednesday, February 26, 2014

A guerra suja da Syngenta contra o cientista Tyrone Hayes

por Heloisa Villela, de Nova York


O trabalho de pesquisa do cientista Tyrone Hayes mais parece um roteiro pronto para um diretor como Martin Scorsese.

A jornalista Rachel Aviv, da revista New Yorker, contou a saga de Hayes em nome da Ciência.

Uma pesquisa que bateu de frente com a Syngenta, a gigante suíça que fabrica pesticidas e vende sementes.

Em 1998 Tyrone Hayes já trabalhava no laboratório de biologia da Universidade da Califórnia em Berkeley quando foi convidado, pela Syngenta, para fazer uma pesquisa a respeito do herbicida atrazina, fabricado pela Syngenta. Hayes topou. Ele tinha trinta e um anos e já havia publicado vários trabalhos sobre o sistema endocrinológico dos anfíbios.

Os dois lados, com certeza, se arrependeram da parceria. Hayes descobriu que o atrazina atrapalhava, ou até impedia o desenvolvimento sexual dos sapos. A empresa não gostou do resultado, tentou impedir a publicação do estudo, tentou comprar os dados para mantê-los em segredo e as relações da empresa com o cientista foram rompidas, definitivamente, no ano 2000.

Mas Hayes não é do tipo que trabalha apenas pelo dinheiro. O que ele percebeu na pesquisa atiçou a curiosidade do cientista e ele continuou estudando os efeitos do atrazina sobre os anfíbios por conta própria.

O artigo de dez páginas da revista New Yorker conta como a empresa estruturou e levou a cabo uma ampla campanha de difamação de Hayes com o objetivo de destruir a reputação do cientista.

Estudou todos os aspectos profissionais e pessoais da vida dele para melhor explorar qualquer ponto fraco. Lembra demais a descrição de táticas descritas em detalhes pelo jornalista Rubens Valente no livro Operação Banqueiro.

Como já se desconfiava por aqui, as grandes empresas farmacêuticas e do agronegócio contratam cientistas e pesquisadores para que repitam informações que interessam às empresas. E muitos se prestam, sem pudor, a esse papel.

Pior: o artigo da New Yorker relata as manobras adotadas pela empresa para comprar, também, o apoio dos responsáveis pela aprovação de drogas no mercado norte-americano.

Os riscos que o herbicida atrazina oferece à saúde foram considerados sérios o suficiente para que o produto fosse banido na Europa. Nos Estados Unidos, continua sendo usado em cerca de metade da produção de milho do país.

No Brasil, também é aplicado à vontade nas plantações.

A perseguição a Tyrone Hayes foi tão intensa que ele passou a ser visto, pelos colegas, como um paranoico. Achava que tinha a conta de e-mail monitorada, que era perseguido, que não podia fazer palestras sem a presença de agentes da Syngenta que tentavam intimidá-lo e criar dúvidas a respeito das conclusões que ele apresentava.

Para se prevenir, ele passou a copiar os dados da pesquisa e enviar para a casa dos pais. Usou o e-mail como forma de confundir o adversário, com a ajuda dos alunos que trabalhavam no laboratório com ele. Recentemente, ficou provado que Hayes não era nada paranoico e que a conspiração existia de fato.

Um dos únicos biólogos afro-americanos de destaque do país, Tyrone Hayes era considerado um dos melhores professores de Berkeley e uma das grandes promessas do meio acadêmico e científico.

Ao longo dos últimos 14 anos de guerra aberta contra a Syngenta, ele acabou perdendo o laboratório em Berkeley. Mas de certa forma, foi vingado.

A Syngenta foi processada em uma ação coletiva por 23 municípios do meio-oeste dos Estados Unidos. Eles acusaram a empresa de esconder o perigos reais do atrazina para a saúde.

Por conta do processo, jornalistas norte-americanos tiveram acesso a documentos internos, memorandos e e-mails da empresa. O trabalho de Tyrone Hayes foi a base científica usada pelos advogados dos municípios.

Desde que passou a se dedicar ao estudo dos efeitos do atrazina sobre animais e até sobre humanos, Hayes angariou seguidores.

Outros cientistas seguiram a mesma linha e ampliaram as descobertas do pioneiro na área. E hoje já existem resultados que falam em defeitos de nascimento em humanos. Enquanto os pesquisadores acumularam dados contra o herbicida, a empresa se ocupou em colher informações sobre Hayes.

Em entrevista ao programa DemocracyNow! da jornalista Amy Goodman, Tyrone Hayes contou que as ameaças não paravam na esfera científica.

Ele disse que um representante da empresa o abordou antes de uma palestra e sussurrou que ele podia ser linchado, que ía mandar uns rapazes para mostrar a Hayes como é ser gay e chegaram até a ameaçar a segurança da mulher e da filha dele.

Enquanto isso, vários trabalhos foram apresentados à EPA (Agência de Proteção Ambiental) a respeito dos perigos do atrazina para a saúde e da contaminação do solo e da água nos locais onde ele é usado.

Dados científicos que as autoridades norte-americanas refutaram duas vezes: mantiveram a licença do produto, sem restrições.

Depois também veio à tona que alguns membros do comitê da EPA, que tomou a decisão favorável ao atrazina, tinham relações com a Syngenta.

Este ano, o herbicida, o segundo mais usado nos Estados Unidos, será avaliado novamente. Quem sabe qual será o resultado da análise desta vez…


PS do Viomundo: A pesquisa do cientista demonstrou que o herbicida provoca a mudança de sexo em sapos; na excelente entrevista que deu ao DemocracyNow!, ele estranha que os conglomerados produzam tanto substâncias cancerígenas quanto contra o câncer. Por que $erá?

R.I.P. - Paco de Lucía

A música perdeu muitos acordes com a morte do grande mestre da guitarra clássica e do Flamenco.

                                   Photo Credit: Martyn Strange

Tuesday, February 25, 2014

Vandalismo

Têm falado muito sobre vandalismo no Brasil. 

Vandalismo é o que vemos no video abaixo. Todo o resto é ruído jornalístico.

O nome do criminoso é Roberto Cláudio, prefeito de Fortaleza e médico-sanitarista com PhD em saúde pública pela Universidade do Arizona, nos EUA.

Eu diria que seu PhD é mais é HIGIENISMO SOCIAL e EUGENIA.





Sunday, February 23, 2014

Ucrânia: o palco geopolítico.


Sobre os justiceiros


“Num mundo que prefere a segurança à justiça, há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança. Nas ruas das cidades são celebradas as cerimônias. Cada vez que um delinqüente cai varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que a atormenta. A morte de cada malvivente surte efeitos farmacêuticos sobre os bem-viventes. A palavra farmácia vem de phármakos, o nome que os gregos davam às vítimas humanas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos de crise.”

Eduardo Galeano

Thursday, February 20, 2014

A velocidade supersônica da verdade...e da mentira.

Há vinte anos atrás, toda a informação que a sociedade consumia estava condicionada às peneiras da grande mídia tradicional: um punhado de canais televisivos, emissoras de rádio e jornais e revistas de grande circulação. Todos esses veículos eram (e ainda são) controlados por um número muito limitado de grupos empresariais diretamente interessados no teor das notícias. Desde então, e sobretudo a partir da virada do milênio, foi surgindo um novo meio que acabaria por revolucionar toda a comunicação das sociedades tecnológicas: a Internet. No entanto, o potencial, digamos, libertador desse novo veículo foi rapidamente percebido pelos grandes grupos das telecomunicações, que passaram a utilizá-lo como uma mera extensão dos veículos tradicionais. Ainda assim, foi possível enfraquecer os grandes oligopólios da mídia e criar alternativas à veiculação de notícias padronizadas e formatadas. Um pouco por todos os lados, e acompanhando determinados ativismos que necessitavam criar seus próprios meios de difusão, surgiram infinidades de sítios informativos, inicialmente em forma das páginas (sites) e mais recentemente em múltiplos formatos, como os jornais online, os canais televisivos do Youtube e os grupos das redes sociais. A informação descentralizou-se, pelo menos para quem estava atento, porque os grandes grupos continuaram dominando a maior parte da informação e a televisão continuou sendo a principal janela para o mundo da maioria da população.

A descentralização da mídia e a profusão de veículos alternativos foram grandes vitórias para os que sempre se embateram contra os oligopólios do setor e exigiram a sua democratização, e apesar das vitórias em termos materiais terem sido pequenas, o fato é que as alternativas aos grandes grupos reforçaram-se ao ponto de não apenas servirem como veículos de informação paralela, mas também como sistemas de vigilância às potenciais mentiras e manipulações da grande imprensa. E o que inicialmente se restringia a certos ativismos políticos e grupos ideológicos fora do mainstream foi se espalhando e se tornando uma realidade a ser levada em conta.

Hoje, qualquer pessoa com acesso à Internet e com algum discernimento em relação aos diversos interesses que regem a sociedade pode estruturar suas opiniões com base na compreensão de diferentes pontos de vista. Provavelmente, a maior profusão de informação teve lugar no campo político e ideológico e os embates permaneceram ríspidos, mas muito mais justos, porque a disparidade dos meios disponíveis diminuiu. Há vinte anos, no Brasil, a totalidade dos meios de comunicação estava nas mãos de setores conservadores (incluindo a Igreja Católica e a Protestante), da direita política e de grupos empresariais. Contava-se nos dedos o pequeno número de publicações ligadas, sobretudo, a movimentos sociais de esquerda. A tiragem dessas publicações era insuficiente e tinha dificuldades até para abranger os seus próprios contingentes. Atualmente, a grande imprensa continua nas mesmas mãos, mas a Internet permitiu uma difusão muito maior das ideias tradicionalmente marginalizadas e elas se fazem ouvir.

O grande auge do poder da imprensa independente e alternativa, que está acontecendo neste momento, surgiu durante as chamadas "Jornadas de Junho" com as gigantescas manifestações por todo o Brasil. A grande mídia fez a sua tradicional cobertura e foi claramente ridicularizada pela mídia ativista, que expôs todas as mentiras e manipulações que há vinte anos não eram nitidamente detectadas. O poder das imagens era absoluto nos anos noventa. Ninguém se punha a questioná-las. Uma imagem era uma prova por excelência. Hoje, graças à imprensa alternativa, sabemos muito bem que as imagens podem ser perfeitamente adaptadas a uma certa retórica e uma certa linha editorial. E também sabemos que qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de softwares de audiovisuais pode fabricar provas das suas próprias versões da realidade.

Mas nem tudo pode ser comemorado. A política e as divergências ideológicas são poderosas cargas emocionais e ninguém está alheio a elas. Se por um lado os novos veículos de informação serviram para desmentir os tradicionais e equilibrar as forças, por outro lado eles também estão sendo utilizados para a difusão de mentiras e de montagens segundo certas conveniências. E ninguém escapa a isto. Ninguém! Todos nós, que participamos de alguma forma em debates e dinamizamos os nossos próprios canais informativos, somos culpados e ajudamos a tornar a mentira no maior produto da informação supersônica, ao lado da verdade - ambas estão misturadas e é preciso saber discernir para identificá-las sem confundi-las. A maioria das pessoas (sobretudo quem possui convicções ideológicas mais profundas) está absolutamente convencida de que a nobreza das suas ideias justifica a fabricação de mentiras contra os opositores, representantes invariáveis de tudo o que é mau. A verdade não é nada perante a necessidade de impor uma ideia a qualquer custo, e todos os lados dos embates políticos se tornaram experts em mentiras, difamações e acusações superficiais. A ética ficou remetida aos bobos, aos ingênuos, aos "reformistas" e traidores, até.

Mas a mentira não é o único problema. Tão grave quanto ela é a desonestidade intelectual estampada em linhas argumentativas e retóricas que estraçalham os limites da coerência e se alimentam na ignorância e incapacidade de discernimento de uma maioria que migrou para os novos meios de comunicação mas mantém a mesma postura de quando era telespectadora hipnotizada. Essa massa heterogênea está disposta a aceitar qualquer manchete e qualquer notícia como verdade absoluta desde que digam o que elas querem ouvir ou ler. Todos nós, em algum momento, já fomos vítimas ou responsáveis por alguma mentira. E todos nós também já fomos vítimas das nossas próprias mentiras e nos auto-enganamos em nome de certas conveniências (é muito difícil admitirmos um erro ou uma linha de raciocínio equivocada, somos demasiado orgulhosos). É altamente provável que voltemos a fazê-lo, mas é importante que nos livremos desta dinâmica para que sejamos honestos tanto quanto possível. Quando, num debate, acusamos um opositor de difundir mentiras, devemos simultaneamente analisar a nossa própria postura. Uma coisa é certa: quem mente ou difunde mentiras convenientes não tem moral nenhuma para criticar ou desmascarar oponentes que fazem o mesmo. Nenhuma! Não existe nenhuma ideologia suficientemente nobre para se sobrepor ao valor da verdade e da honestidade. As ideias tornam-se nobres à medida em que são construídas com base na verdade, e não o contrário.

Para exemplificar um pouco, basta utilizar algumas notícias veiculadas nas últimas semanas e que demonstram bem que existe uma guerra informativa baseada em antigas dicotomias. Quando a morte do cinegrafista Santiago Andrade foi confirmada, rapidamente se espalhou a notícia, nos meios alternativos, de que havia um elemento infiltrado com traços físicos que não correspondiam ao rapaz acusado e ela foi utilizada para a fabricação de inúmeras montagens por parte de quem dizia serem provas de algum rolo obscuro. Eu próprio cheguei a acreditar nisso num dado momento e precisei ouvir a voz da minha consciência para fazer uma investigação mais profunda e adequada antes de espalhar aquilo. Ficou então provado que havia dois rapazes com roupas semelhantes, mas que o sujeito acusado e preso era, de fato, o que portara o rojão responsável pela tragédia. 

Por outro lado, os protestos que ocorrem na Venezuela nos têm oferecido inúmeras imagens de pessoas brutalmente violentadas pela polícia. Tais imagens seriam verdadeiramente relevantes e reveladoras caso não fossem provenientes de outros protestos em vários países bem distantes da América do Sul. Há, sim, brutalidade policial na Venezuela de Maduro, como também há uma clara tentativa da parte da oposição controlada por Leopoldo López de perpetuar um golpe de estado. A própria oposição mais tradicional está assustada com a figura de López.

De Kiev em chamas surgiu um video com o apelo emotivo de uma bela moça ucraniana que, num inglês comovente, clama aos povos do mundo para que espalhem a mensagem e ajudem o povo ucraniano na luta pela liberdade e pela democracia. Não sei quem é a moça e não quero fazer associações precipitadas, mas seu discurso não pode ser digerido exclusivamente como se resumisse tudo o que se passa na Ucrânia. Ele é absolutamente superficial e esconde uma realidade muito mais complexa que envolve um conflito geopolítico entre EUA-União Europeia de um lado e a Rússia de outro, e as preocupações de ambos os lados são os seus acordos comerciais e a influência da região. Além disso, a vanguarda dos protestos em Kiev é controlada por grupos neonazistas, como o partido Svoboda e os simpatizantes de Stepan Bandera, o ucraniano que lutou por Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Antes de difundirmos uma causa, precisamos estar minimamente informados sobre tudo o que a envolve.

Apesar de achar que podemos mitigar o problema da difusão (muitas vezes involuntária) de mentiras, é evidente que só será possível alcançar um certo sucesso, e mais importante do que exigir honestidade aos outros é assumirmos uma postura honesta e preocupada com a vasculha da verdade. Dentro do debate político dos meios alternativos de informação há os grupos que se propõem à intransigência e têm como único motivo de existência o combate histérico que não supera a superficialidade dos chavões e clichês. Esses grupos se sustentam na nobreza das suas ideias para assumirem a negação da racionalidade e não abrirão qualquer brecha ao desenvolvimento ético e responsável do debate político. Não estão interessados em exercícios argumentativos ou em ponderações equilibradas que construam opiniões coerentes. Limitar-se-ão à gritaria e à mera catarse. Perante esses, não resta mais nada que não o desprezo, porque não constituem oponentes ou aliados para quem procura desenvolver ideias. São fontes que jorram vácuo, digamos.

Exemplos disso são os fanáticos militantes do PT, por exemplo, que pegam em qualquer dado estatístico para esfregar na cara do mundo inteiro que seus políticos de predileção são infalíveis e absolutamente honestos. São os que ilibam os condenados pelo Mensalão apenas por uma questão de compatibilidade ideológica. Também são os que não dizem uma única palavra sobre os escândalos de corrupção da oposição enquanto difundem qualquer vírgula que represente uma crítica mínima ao PT. São os que chamam os manifestantes mascarados das ruas brasileiras de vândalos assassinos e que se derretem em elogios aos mascarados venezuelanos ou aos ucranianos. São os que endossam os protestos encarniçados no Brasil enquanto pedem aos berros que os que fazem o mesmo na Venezuela sejam espancados e presos pela polícia. 

Não sei se é uma impressão minha ou se é uma realidade, mas parece-me que o mundo (ou pelo menos o Ocidente) vai voltando à bipolarização da Guerra Fria e os debates se tornam cada vez mais limitados à velha dicotomia, ignorando a extrema complexidade que cada problema carrega. Nem todo esquerdista é bolivarianista, nem todo indivíduo nas ruas de Caracas é fascista, nem todo ucraniano odeia os russos, nem todos os russos acham que os ucranianos devem ser subalternos e nem todos aqueles que querem despregar a Ucrânia da Rússia são aliados da política externa dos EUA. 

Não estou tentando empurrar a discussão política a um centrismo neutro e esvaziado de ideologias, de forma alguma. Eu próprio me identifico com uma ideologia radical (no caso, para lá da esquerda), que é o anarquismo. Percebam que utilizo a palavra "radical" como significando a busca pela raiz das questões, não como sinônimo de extremismo. E por me identificar com o anarquismo não sou obrigado a concordar e ser conivente com as mentiras, manipulações e ilações superficiais ou resultantes de falácia ou falhas argumentativas que existem e são difundidas pelos meus próprios "companheiros". Aliás, nalgum momento seremos atingidos pelos estilhaços da nossa própria desonestidade, porque o seu fruto será a nossa arma em algum debate e os opositores poderão percebê-la e utilizarem-na contra nós, inclusive ridicularizando-nos. Por isso devemos ter todo o interesse em combater posturas destrutivas dentro dos nossos círculos. Quem inventa mentiras está induzindo os próprios companheiros ao erro. Limitar-se a um gueto ideológico causa cegueira e incentivar a cegueira é burrice, porque não eleva os debates a níveis verdadeiramente construtivos que possibilitem uma visão ampla e esclarecida dos fenômenos abordados. Mesmo com o advento dos meios alternativos de informação, é necessário aceder (com postura crítica) aos meios convencionais para que possamos compreender, enquadrar e esmiuçar os diferentes pontos de vista e procurar desconstruí-los com o constante exercício racional. Chavões e palavras de ordem servem para reforçar a disposição e dar ânimo, mas não servem como argumentos quando nos debruçamos sobre assuntos que exigem discernimento e reflexão coerente.

Vivemos numa época em que a velocidade das notícias é supersônica e diariamente somos confrontados com dezenas de assuntos. Essa velocidade nos permitiu o acesso amplo à informação, mas também nos tem impedido de pensar com cuidado e, sobretudo, com honestidade. O acesso aos meios de comunicação mais democratizados deve ser melhor utilizado. Temos a possibilidade de enriquecermos-nos intelectualmente e de termos uma visão equilibrada do mundo. Temos a possibilidade de não sermos manipulados e também de não manipularmos a ninguém, incluindo a nós próprios.

Isto não é um apelo à imparcialidade, afinal ela não existe. Somos, todos, parciais em algum grau. Mas é possível sermos parciais e ao mesmo tempo honestos, tolerantes e ponderados. É preciso ponderar, sim, e é preciso saber admitir erros.

Enquanto justificarmos todos os meios em nome das ideias, a nossa capacidade de amadurecimento intelectual continuará sendo destroçada pela velocidade supersônica da verdade e da mentira.

Tuesday, February 18, 2014

Editorial corrigido da Globo

O video montado pelo Rafucko chegou às 40 mil visualizações em 8 horas antes de ser excluído a pedido da Rede Globo com a alegação dos direitos de autor. Tão logo isso aconteceu, inúmeras pessoas que haviam feito download do video voltaram a publicá-lo no Youtube. Nele, Rafucko, de forma extremamente sexy, desmente os principais pontos do editorial cínico da emissora na voz de Willian Bonner. É de rir!


Monday, February 17, 2014

Há quem tenha medo que o medo acabe


Globo fazendo globice


Acabou a Baderna

ACABOU A BADERNA


por Gregório Duvivier


Encontraram o grande financiador do movimento. Já foi provado que membros do PSOL doaram 150 reais para se realizar uma ceia de Natal para mendigos e o dinheiro foi usado para comprar várias rabanadas. Como se sabe, poucas coisas são mais letais que uma rabanada na cara, especialmente se ela estiver dormida.

Muita gente já deve ter morrido a golpes de rabanada do PSOL. Isso porque o pessoal não declarou o panetone. Um panetone é uma arma branca! Ainda mais se for daqueles bem duros, da Visconti. Quando pega na testa, mata na hora. Mas não vai mais matar ninguém. A fonte secou!

Engraçado pensar que alguns acreditavam que o motivo da revolta de junho era a insatisfação popular. Finalmente ficou provado que não. O povo está muito feliz. Eduardo Paes já aumentou a passagem de novo. E não vai dar em nada. O povo não tem problema nenhum com aumento de passagem. O povo não tem problema nenhum com nada. Quem inventa problema é a esquerda caviar. O povo está feliz. Sempre esteve.

Detalhe: ao exumarem o corpo de Josef Stálin, descobriu-se que em sua farda, no bolso esquerdo, havia uma estrela na qual podia-se ler as impressões digitais de Iran Kruschewsky, assessor de Stálin, cuja filha primogênita, Anna Nicolaievna, foi amante de Miriam Pletskaya, embaixatriz da extinta Tchecoslováquia cujo filho, Benjamin Berndorff, tem as mesmas iniciais de Bruno Bianchi, ortopedista brasileiro nascido em 1967, mesmo ano em que nasceu o deputado Marcelo Freixo. Procurado, o deputado negou qualquer envolvimento com o regime stalinista.

"Não acho que o ano em que eu nasci seja um dado relevante para tecer esse tipo de conexão estapafúrdia", afirmou o deputado, saindo pela tangente. A palavra "estapafúrdia", no entanto, já havia sido usada por José Sapir, meu cunhado, para designar a roupa que uma senhora usava em Copacabana, bairro do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu Oscar Niemeyer, stalinista confesso. Ou seja...

A legislação vai mudar, graças a Deus (e à Dilma). Não vamos mais tolerar baderna. A ex-guerrilheira, quem diria, vai baixar o AI-5. O Brasil finalmente está virando um país sério: bandido preso no poste, Polícia Militar ameaçando Porta dos Fundos, leis antiterrorismo. O caminho se abriu. Este é o ano em que Bolsonaro vai assumir a presidência da Comissão de Direitos Humanos. Chegou o momento, Capitão! Em abril, nossa revolução faz 50 anos.

Tuesday, February 11, 2014

Black Bloc: o bode expiatório

Atenção: a primeira parte do texto foi escrita no dia 11 de Fevereiro. Em seguida, há duas atualizações, uma do dia 12 e outra do dia 13, ambas devidamente indicadas.

Um cinegrafista foi atingido por um rojão durante confrontos entre a polícia e manifestantes no Rio de Janeiro. Infelizmente, ele morreu. Agora sua morte está sendo instrumentalizada pela classe política - sob forte pressão da mídia - para que se aprove a Lei Antiterrorismo, que até cego vê que será uma forma de tentar impedir protestos durante a Copa do Mundo.

É urgente que jornalistas possam exercer com segurança seu trabalho, assim como manifestantes possam protestar sem sofrerem com a brutalidade policial. E ela é absolutamente evidente!


Mas como garantir a segurança de um jornalista que se mete no meio de confrontos? É indispensável que os jornalistas cheguem o mais próximo possível dos acontecimentos, mas eles próprios devem medir o perigo. Há uma certa diferença entre ser abatido propositadamente e ser vítima de um acidente altamente provável num cenário de confrontos. Dizer isso não é relativizar a morte do cinegrafista de forma alguma. O homem - ainda não identificado - que lançou o rojão não o deveria ter feito, assim como a polícia não deveria agir como tem agido. Não dá para defender o responsável pelo disparo do artefato, seja ele um manifestante, um adepto da tática Black Bloc, um mero transeunte infiltrado ou um policial. É irresponsável soltar um rojão no meio de pessoas e por mais que o objetivo não tivesse sido atingir alguém em específico, fazê-lo no cenário em que foi feito é absolutamente condenável. Atingiu o cinegrafista, mas poderia ter atingido outro manifestante, por exemplo. Dá para comparar o ocorrido com o caso da jornalista ferida no olho no ano passado. Ela foi atingida pela polícia que disparou balas de borracha claramente em direção aos manifestantes. Tendo ou não um alvo, é de se condenar que se disparem projéteis perigosos no meio de grupos de pessoas. O responsável pelo ferimento à jornalista não foi punido e a polícia continuou agindo com a mesma truculência. No caso do cinegrafista, sobrará para um rapaz que, até onde se sabe, apenas portava o rojão. Deverá ser indiciado? E os policiais que diariamente acedem a manifestações sem identificação? Quem terá sido o verdadeiro autor do disparo? Antes de falar em manifestantes ou em Black Bloc, deve-se apurar isto. E a mídia, que fala em assassinato, deveria ter a decência de recriar toda a situação num cenário de confronto face ao qual o cinegrafista arriscou-se ao pôr-se dentro dele. Ele não tem culpa; estava fazendo o seu nobre trabalho. Tam
pouco foi assassinado cruelmente como agora vociferam. E o que dizer da Band, empresa para a qual ele trabalhava? Não terá ela nenhuma culpa? Quem acompanha as manifestações desde Junho passado sabe que elas têm sido sempre tensas e recheadas de confrontos. Não se envia alguém para trabalhar dentro delas sem proteção.

É vergonhoso como esses abutres da comunicação em massa foram rapidamente caçar um bode expiatório dentro dos grupos mais ativos que protestam pelo Brasil, virando a opinião pública - sempre tão facilmente maleável - contra eles. Há alguns dias fizeram o mesmo com o caso do fusca incendiado, já desmentido com a comprovação através de videos de que ninguém ateou fogo a ele e o seu motorista foi quem avançou sobre o colchão em chamas. Agora estão noticiando a morte do cinegrafista como assassinato e culpabilizando o Black Bloc, promovendo uma verdadeira caça às bruxas. Ora, até então, na esmagadora maioria dos casos em que jornalistas ou cinegrafistas foram vitimados por algum tipo de violência, a polícia sempre foi comprovadamente culpada e a mídia sempre foi demasiado branda nas críticas à generalidade da ação policial (para a mídia há uma enorme diferença entre violência policial contra jornalistas e contra manifestantes). 

A morte do cinegrafista - que é tão lamentável e triste quanto a morte dos manifestantes que já pereceram desde que as manifestações surgiram - foi um acidente (ele estava no meio dos confrontos) que poderia ter sido causado tanto pelos manifestantes quanto pela polícia e poderia ter vitimado qualquer outra pessoa, incluindo manifestantes ou policiais. Haveria festa nos confins da Internet caso o vitimado fosse um manifestante, a direita não diria absolutamente NADA e a mídia remeteria o caso ao rodapé. O cinegrafista não foi um alvo definido, o que, diga-se, não diminui o peso da tragédia. No máximo, acusa-se de homicídio involuntário ao responsável pelo artefato usado, não a totalidade dos manifestantes, como tentam fazer a mídia, o governo petista e a asquerosa direita de plantão na Internet, que agora vomita seu ódio contra os manifestantes, mas que quando sentiu que poderia fazer parte dos protestos e desviar o foco todo para o governo federal, não hesitou, inclusive promovendo perseguição violenta a quem erguesse bandeiras vermelhas. 

Desde o primeiro dia dos protestos, em Junho de 2013, a polícia brasileira sempre procurou o confronto, sempre provocou e sempre foi truculenta e excessiva. Ela é responsável pela tensão criada a cada manifestação de rua. Essas manifestações nunca pertenceram à direita e nem ouviram as diretrizes da mídia. Elas existem diariamente porque há pessoas e grupos ativos envolvidos na organização de atos enquanto os reacionários vomitam sua fúria na Internet. Essa gentinha repugnante, retrato fiel do Brasil das gentes "de bem" e dos "bons costumes", aliada à mídia controlada por um pequeno punhado de grupos financeiros, irá sempre tentar jogar o povo contra os manifestantes, e na maior parte das vezes irá conseguir. Mas é preciso lembrar que há a opinião pública da Internet e há a opinião pública das pessoas nas ruas, e elas não são tão similares como nos fazem crer. É interessa ver como o anonimato da Internet torna as pessoas ainda mais embrutecidas. 99% do discurso encontrado no rescaldo das notícias não passa de histeria e simplismo grosseiro, sempre acompanhado de fúria pseudo-justiceira e de uma gigantesca lacuna onde deveria haver capacidade de discernimento. Trava-se uma implacável guerra ideológica nas entrelinhas da informação e os vencedores são sempre os mais bestialmente desprovidos de escrúpulos.

Sobre o Black Bloc, os mascarados, essa gente agora demonizada pelos idiotas úteis, só digo uma coisa: têm cada vez mais o meu apoio! O preço do transporte voltou a aumentar e os que se utilizam dessa tática são uns dos poucos que estão na rua, enquanto as gentes "de bem" se reduzem à pequenez dos seus comentários no mundo virtual.

Atualização (12/02/2014)


E agora começam a chover textos como este, que servem apenas para saciar o apetite dos famintos por respostas imediatas simplistas. Em primeiro lugar, comparar as manifestações (mesmo as mais agressivas) à violência psicopata é de uma desonestidade intelectual aberrante. Manifestações violentas (o certo é chamar de confrontos entre polícia e manifestantes, geralmente provocados pelos primeiros) acontecem em todos os países, incluindo os mais avançados e calmos do mundo. Elas nunca foram característica especial dos brasileiros. Em segundo lugar, a imprensa brasileira assume essa carapaça judicial e faz seus julgamentos, mas não há nenhuma prova que ligue o autor do disparo a um grupo em concreto, nomeadamente ao Black Bloc, QUE NÃO É UM GRUPO (é incrível ter de repetir isso todas as vezes que o termo é mencionado). Em terceiro lugar, os jornalistas da grande imprensa corporativa estão conseguindo, com essa pressão histérica, levar a classe política (que gosta da ideia) a implantar a Lei Antiterrorista, que irá enquadrar protestos de rua e poderá significar 30 anos de cadeia para manifestantes sob alguma alegação. As elites estão conseguindo instrumentalizar ao máximo a morte do cinegrafista.


Lembram-se do PT, aquele partido da estrelinha vermelha? Esqueçam! O símbolo do PT deveria ser um tucano. Essa corja de burocratas já não sabe o que são movimentos sociais porque eles são-lhe inconvenientes. E os simpatizantes do PT parecem baratas tontas, vivem oscilando entre discursos revolucionários de sinceridade duvidosa e discursos agressivamente reacionários que causam inveja à própria extrema-direita. São uns oportunistas que não têm nenhum respeito pelo cinegrafista morto e utilizam-no como instrumento para políticas repressivas. A tragédia pessoal do cinegrafista está sendo usada para acelerar a aplicação da Lei Antiterrorista para enquadrar manifestantes.


As últimas notícias sobre o caso tornam todo o cenário absolutamente fétido. As pessoas acreditam em tudo o que se publica desde que vá de encontro aos seus interesses (político-partidários). Agora duvido muito que esse rapaz preso (um camaleão que de branco passou a negro) alguma vez fez parte de algum grupo ou teve alguma relação com quem adota a tática Black Bloc. Já estão dizendo que o Black Bloc recebe dinheiro de partidos e até que financia tráfico de drogas. Começa a me cheirar a montagem, afinal o bode expiatório é perfeito. Até há uns tempos atrás o Black Bloc contava com a simpatia da maioria da população segundo as pesquisas da própria imprensa corporativa e a tensão só ia aumentando conforme nos aproximamos da Copa do Mundo. Era preciso, de alguma forma, travar a crescente adesão aos protestos mais radicalizados. Pouquíssima gente está interessada na verdade 
e durante esses dias os meios de comunicação em massa serão uma versão coletiva da Rachel Sheherazade e dos Datenas da vida. Cobrarão que se traga a público culpados por crimes cujos julgamentos já foram feitos por eles. O objetivo não é fazer justiça, mas calar as vozes das ruas e cortar o elo entre elas e a opinião pública, os consumidores de (des)informação.


Atualização (13/02/2014)

Depois de assistir a vários videos publicados na Internet, algumas suposições devem ser descartadas em abono da verdade. Ontem, pelas informações analisadas até então, eu estava quase convencido de que o sujeito preso ou era o que se chama de P2, ou seja, um infiltrado da polícia, ou estava sendo acusado por um crime cometido por uma outra pessoa que poderia ser um P2. Mas, hoje, ao analisar com cuidado várias fotos e videos, parece-me evidente que o rapaz preso não é o mesmo tipo que as imagens mostram falando com a polícia. Ambos têm camisa cinza suada e calças jeans claras, mas alguns detalhes comprovam tratar-se de duas pessoas diferentes. O rapaz preso é pardo e usa sapatos bege. O indivíduo de capuz preto visto recebendo o presumível rojão, que parece mesmo ser o que foi preso, de nome Caio Silva de Souza, tem camisa cinza suada, calças jeans claras e sapatos bege. Também há algumas fotos que o mostram, de frente, segurando um lenço ou camisa preta numa das mãos. Já o outro rapaz, branco, com o perfil semelhante ao do ator Wagner Moura, tem a pele nitidamente mais clara e usa sapatos pretos. Se é P2 ou não, não se sabe até então. Nos videos ele é visto no meio dos manifestantes ou falando com a polícia (junto com outros manifestantes) como se informasse do ocorrido com o cinegrafista. Nenhum video mostra o rojão sendo disparado e ainda há várias perguntas que precisam de resposta. A primeira delas, imprescindível para encerrar as dúvidas, tem a ver com a direção seguida pelo artefato. Pouco tempo após o ocorrido, alguns jornalistas da grande mídia que estavam no local afirmaram ao vivo que ele teria sido disparado pela polícia. As imagens não são muito claras nesse sentido e mesmo após analisá-las várias vezes, fiquei na dúvida. Há uma imagem que sugere que o disparo veio do lado da polícia, mas pode ser apenas um efeito enganador dos estilhaços do rojão. Noutras imagens, parece que o rojão atingiu o cinegrafista por trás vindo do lado dos manifestantes. O que se sabe é que tanto Caio como Fábio confessaram aquilo de que foram acusados, ou seja, o primeiro teria disparado o rojão dado pelo segundo. Não conheço a proveniência de nenhum dos dois e muito menos as suas ideias políticas e nem preciso conhecer por serem irrelevantes perante o ocorrido. Um rojão disparado irresponsavelmente no meio de uma manifestação atingiu e matou um cinegrafista e a atenuação das responsabilidades a serem assumidas só poderá vir da falta de intencionalidade e não das convicções ideológicas. Mas também é preciso dizer que nem Caio nem Fábio são assassinos como gritam telespectadores reproduzindo a grosseria desinformativa dos opinion makers. Não são criminosos cruéis, vagabundos pergisosos nem psicopatas. A morte de uma pessoa resultou de um acidente com um rojão. Pela lei, configura-se o crime, sim. Mas não foi intencional. Os rapazes não agiram com a intenção de matar ninguém nem de atentar contra a liberdade de imprensa. Isto quem faz muito bem é a polícia e é bom não esquecer que Santiago foi o primeiro jornalista morto - e não o primeiro vitimado -, mas não foi a primeira vítima mortal das manifestações e nenhum dos casos anteriores teve manifestantes como culpados. Com uma sociedade que despreza a coleta racional e coerente dos fatos e que berra por respostas simples imediatas, pipocam pseudo experts em psicologia e sociologia por todos os lados, e os jovens manifestantes, até então vistos como esperança para o futuro, são remetidos ao papel de manipulados e baderneiros sem causa por essa trupe fajuta.

Mas há outras perguntas pertinentes: por que o advogado que defende tanto a Caio como a Fábio é o mesmo? Por que ele tentou tão apressadamente ligar o deputado Marcelo Freixo aos acusados? Qual a ligação desse advogado com as milícias policiais do Rio de Janeiro? Por que ele sugeriu que os black blocs são financiados por partidos? Por que o Black Bloc enquanto tática (embora confundida sempre com grupo) se tornou tão rapidamente, sem comprovação, e apenas com o julgamento conveniente da mídia, o grande bode expiatório? Por que a polícia do Rio de Janeiro tem utilizado tantos P2 nas manifestações? De uma hora para outra, manifestantes que vinham tendo a simpatia da maior parte da população e que inclusive tinham se tornado heróis para os professores em luta do Rio passaram a ser os grandes vilões e culpados de todas as mais conspiratórias das acusações? Fala-se até em tráfico de drogas! A quem interessa virar o povo contra os manifestantes às portas da Copa do Mundo? Por que a mídia amplificou tanto um caso e ignorou tantos outros que também tiveram a morte de pessoas nas manifestações? Se o disparo tivesse sido feito pela polícia, todo esse alarido existiria? 

As últimas comprovações em relação aos autores do disparo e, portanto, do crime, não alteram em nada a minha opinião sobre a cobertura da mídia, sobre a postura da polícia e sobre a atuação dos black blocs. Aliás, talvez seja bom discorrer um pouco sobre essa tática que tem sido utilizada como bode expiatório de uma forma tão grotesca. A tática Black Bloc não é nova e nem surgiu no Brasil durante as manifestações de Junho de 2013. Ela não é uma consequência do estado de violência no qual o Brasil está afundado, como sugerem os formadores de opinião da grande mídia, e muito menos é financiada por partidos. Essas acusações que governistas e oposiçionistas fazem, uns empurrando os black blocs para os outros, não passam de politicagem e clubismo partidário. O Black Bloc é uma invenção europeia, nomeadamente alemã e, pelo que consta, surgiu com os anarquistas de Hamburgo, uma cidade conhecida em toda a Europa por ser um importante bastião de movimentos libertários e squats bem ativos e consequentes. A tática supria a necessidade não apenas da ação direta em protestos, mas da própria autodefesa. Por exemplo, quando a polícia tentava desalojar um squat, o black bloc era utilizado para resistir à investida e, obviamente, confrontos violentos se instauravam. A tática ganhou notoriedade mundial sobretudo com os grandes protestos anti-globalização, que tiveram seu ápice durante a reunião do G8 em Gênova em 2001 e que acabou em uma batalha campal gigantesca e resultou na morte do anarquista Carlo Giuliani, vitimado por um tiro na cabeça a sangue-frio disparado por um carabinieri no meio dos confrontos. Em Praga, no ano anterior, a batalha campal também foi muito dura e talvez a necessidade de organizar o black bloc com mais rigor tenha surgido na primeira das grandes manifestações em 1999 na cidade de Seattle - embora o início dos protestos contra o G8, o Banco Mundial, o FMI e a OMC remontem ao final dos anos 80 -, quando os manifestantes pacíficos foram brutalmente reprimidos por batalhões da polícia de choque. Desde então, o Black Bloc vinha sendo utilizado sobretudo na Europa e algumas imagens de protestos mais encarniçados chegavam ao Brasil e todos pareciam olhar para elas e dizer: "pois é, só aqui é que isso não acontece e o povo não faz nada contra essa corja de corruptos". Até que pequenos grupos anarquistas, politicamente engajados, deram a conhecer a tática aos grandes aglomerados que se transformaram em manifestações gigantescas por todo o Brasil. Os manifestantes logo se aperceberam das vantagens em adotar uma postura defensiva efetiva e preparada para a ação direta contra a polícia (talvez quem nunca participou de protestos não compreenda a necessidade de um contingente defensivo pronto para agir ofensivamente). E também perceberam a importância de romper com desfiles carnavalescos arrogantemente ignorados pelo poder político. Ao contrário do que ainda hoje acontece na Europa, a tática Black Bloc no Brasil não é utilizada apenas por anarquistas e dizer que todo black bloc é anarquista é engolir uma das desinformações da mídia. Ela começou a ser gerida de alguma forma por grupos anarquistas que eram os únicos, no começo das manifestações, que sabiam o que ela significava e ainda hoje tentam coordenar ações e ideias através das suas páginas nas redes sociais, mas a tática tem sido usada por vários grupos, ideológicos ou não, e tem sido sabotada por policiais infiltrados, como muitos videos publicados no Youtube comprovam. 

O resultado disso foram as grandes manifestações com confrontos violentos. Quando a polícia agredia, sofria agressão à altura. É claro que, dentre tanta gente com os nervos em chamas, haverá sempre os que se desequilibram e partem para ações com menos sentido, como quebrar e incendiar carros e lojas de cidadãos que nada têm a ver com as elites. Mas estamos falando de manifestações a sério, de revolta popular, e ela SEMPRE, em qualquer parte do globo, foi expressada em excessos, contradições e atos desesperados. Sempre! É isso que caracteriza a revolta popular. Alguém espera que a luta nas ruas seja feita por intelectualóides responsáveis? A revolta mais genuína é a revolta do povão oprimido economicamente. Esse povão forma uma massa heterogênea, confusa, sem grandes convicções ideológicas, sem discursos coerentes e profundos, mas com a revolta genuína de quem sente na pele a humilhação, e essa revolta é muito mais forte quando unificada e apontada para um alvo do que qualquer postulado ideológico intelectual. Claro que há causas e reivindicações, por mais esfumadas que algumas possam ser, e elas são quase sempre identificadas com o que se entende por lutas da esquerda por um motivo evidente: a direita representa o status e os privilégios. SEMPRE foi assim. A direita sempre negou as causas populares, sempre desprezou os sindicatos e os grupos desprovidos de teto ou terra. A direita sempre tentou se agarrar aos valores burgueses e às elites higienistas e nunca assumiu o protesto de rua como uma forma de luta. NUNCA! A direita sempre odiou movimentos sociais e protestos e é por tudo isso que as lutas sociais estão ao lado dos valores da esquerda, seja a do espectro político-partidário, seja a que foge a ele e que nem deve ser chamada de esquerda exatamente por não ser parte desse espectro. Ora, a direita que diz que as causas sociais estão sequestradas pela esquerda e que reivindicam espaço dentro delas é hipócrita e parece ignorar a própria história das ideias direitistas. A esquerda disseminou-se pelas causas sociais porque foi sempre quem deu ouvido a elas e quem tentou dar sentido organizativo ao sentimento de revolta. É ululante!

Dito isso, e no meio de tanta histeria, tanta desinformação vinda de TODOS os lados, tanta gritaria, tanto julgamento midiático e tanta incapacidade de discernir a conjuntura dos acontecimentos numa ordem social, política e econômica, eu sei bem de qual lado estou. Apesar de todas as contradições e de todos os excessos, eu estou ao lado de quem está na rua em revolta. Escrevo à distância, de um país europeu que está afundado numa crise gravíssima que tem concentrado riqueza nas elites e destruído o Welfare State e as conquistas sociais que só foram possíveis através da luta popular. Ao contrário do que tem ocorrido no Brasil, por aqui, em Portugal, as pessoas continuam adormecidas e embora todos estejam fartos de uma crise que tem enviado milhares de jovens por ano a procurar trabalho no exterior, não há materialização da revolta e o pão-e-circo continua gerindo bem as emoções populares e as desviando de comportamentos ativos "perigosos". A minha vontade é de estar no Brasil reforçando quem está nas ruas, seja mascarado ou não. A mídia tem poder para moldar o sentimento do povo e não me espantará se a partir de agora o teor da perseguição e criminalização dos movimentos sociais aumentar a um nível ainda mais agressivo. Quem está de alguma forma ligado às manifestações e às suas causas deve perceber que a luta não é apenas caminhando nas ruas, gritando palavras de ordem e resistindo à polícia, ela também é travada nas entrelinhas da informação e na gestão da compreensão da mesma, na capacidade de discernir, de compreender, de filtrar, de reconhecer manipulações emocionais. A grande mídia brasileira é um dos grandes inimigos das mobilizações sociais e deve ser combatida com o mesmo vigor com que se luta contra as medidas anti-sociais do governo. O jornalista morto, o pobre coitado que teve a infelicidade de ser atingido no meio dos confrontos, não é mártir da mídia nem do governo nem das "pessoas de bem". Ele é um mártir da própria família e de um país em profunda convulsão social que clama por justiça. Instrumentalizar a sua tragédia pessoal é repugnante, mas os inimigos da revolta popular, os que têm medo dela, o farão e expressarão o oportunismo tanto da direita higienista à espreita para abocanhar o poder político, como da esquerda governista burocratizada e convertida numa quadrilha reacionária viciada no poder. 

Por fim, eu gostaria de deixar um recado para Vanessa Andrade, a filha do cinegrafista Santiago: seja uma grande jornalista e honre o nome do seu pai. Desejo que a sua profissão possa ser exercida com mais respeito por parte das empresas de jornalismo e com mais segurança por parte da sociedade. Sobretudo, espero que você dignifique a profissão e atue fazendo a diferença positivamente, porque uma profissão tão importante e digna como essa não merece ser exercida por gente tão medíocre, desonesta e funcionalmente analfaburra como as que controlam os grandes grupos que a mantêm sequestrada.