Não vi os insultos ao
vivo. Estava no metrô ainda a caminho de uma "fanzone" na
cidade onde moro. Não tinha a menor vontade de ver o jogo de
abertura da Copa, só queria mesmo estar na rua com os amigos estrangeiros,
enchendo a cara de vinho e provocando (meti-me no meio da massa verde
e amarela com uma camisa da Croácia). À noite começaram a pipocar
as notícias sobre os xingamentos que a presidente Dilma recebera da
torcida dentro do Itaquerão, boa parte delas em tom bem áspero
contra o comportamento dos torcedores. Essa é a parte que me
espanta: de repente todo mundo virou puritano e moralista. Já não
se pode xingar, já não se pode apelar à catarse. Essa crítica
veio de pessoas identificadas com a esquerda. A primeira que li foi
do jornalista esportivo Juca Kfouri, acusando a elite branca de
mal-educada e mal-agradecida. Concordo absolutamente com a segunda
acusação, mas a primeira é balela. Caso estivesse no estádio, eu
também recorreria a xingamentos. É claro que eu NUNCA estaria no
estádio da abertura da Copa, afinal sou branco, mas não sou da
elite. Também não estaria porque meu único contributo para esse
evento vergonhoso é estar nas fanzones bebendo vinho barato e
torcendo para os adversários do Brasil. Já é um contributo
excessivo; eu deveria estar foragido nalguma praia deserta durante
todo esse mês de pão e circo e jingoísmo alienante. Mas ninguém é
perfeito.
Bem, voltemos aos
insultos. Eu os compreendo e não os condeno de forma alguma. Só
condeno os protagonistas deles. Estamos falando de uma elite que
elege Alckmin e Serra, ou seja, consciência política não é o
forte dela. O motivo dos insultos não me representa minimamente, nem
a mim, nem aos manifestantes que estavam levando porrada da polícia
militar nas ruas de São Paulo. O próprio Juca Kfouri, na entrevista
ao Roda Viva da TV Cultura, mostrou-se bastante ingênuo ao dizer que
as vozes das ruas chegaram aos estádios. Outra balela! As vozes dos
estádios são as vozes de quem não vai a protesto, de quem chama
manifestante de vagabundo. Essa gente pegou o embalo da indignação
popular mas não sabe bem por que motivo o fez. Moda, talvez.
Quiseram mostrar-se moderninhos, engajados. Mas essa gente não tem
nenhum engajamento político. Foram os mesmos que encheram as
manifestações do ano passado com a bandeira do Brasil, tiraram
fotos para o Facebook e em seguida desapareceram das ruas. Insultaram
Dilma apenas porque representam o velho Brasil, não admitem reformas
sociais mínimas e engolem o discurso das Globos e Vejas da vida. A
ingenuidade do Juca Kfouri talvez esteja ligada ao seu amor pelo
futebol, que o faz ainda tentar encontrar um mínimo de dignidade na
Copa do Mundo. É verdade que ele tem a coragem de criticar a
organização do evento, mas não diz nada sobre o fanatismo e o
exagero à volta do esporte. Ele realmente acha que futebol não é
produto de alienação. Mas talvez esperar uma postura ainda mais
crítica de alguém que está atrelado a esse meio seja pedir muito,
sei lá.
Alguém escreveu no
Facebook que havia mais negros na seleção croata do que nas
arquibancadas do Itaquerão. É exatamente isso! E recordemos que
Itaquera é uma região popular de São Paulo. Mas não é só lá.
Todas essas doze novas "arenas" estão recebendo as elites
das suas doze cidades e as dos países que participam da Copa. Ontem
a Globo falava da festa que o povo colombiano estava fazendo durante
a estreia vitoriosa da Colômbia. Ora, ali não estava o "povo",
ali estavam os brancos endinheirados do país, os que podem viajar
para o Brasil e comprar ingressos caros. Essa Copa é para níveis
europeus, não sul-americanos. O Padrão FIFA é um selo de garantia
da elitização do evento. O brasileiro comum vai ficar na rua do seu
bairro vendo os jogos pela televisão.
Houve um ser iluminado
que escreveu que estava sentado ao lado de meia dúzia de negões lá
dentro do estádio, como se a utilização da exceção para
confirmar a regra fosse um argumento de peso. Escorregou na maionese
e nem percebeu, coitado. Deu uma de Pondé.
Os insultos a Dilma não
são algo condenável por si só. Vamos lá, companheiros de
esquerda, imaginemos o seguinte: estivéssemos todos nós no estádio
e FHC ainda fosse o presidente, o que teríamos feito? Eu vomitaria
as entranhas e coraria ao rubro de tanto berrar insultos. Não é
sempre que temos a oportunidade de enviar recados diretos aos nossos
queridos "representantes". Quando a oportunidade aparece é
bom que desabafemos mesmo. Muito mais grave do que os insultos a
Dilma foi o comportamento dessa elite branca tupiniquim contra outros
alvos. Maradona foi hostilizado e saiu furioso do estádio, os
croatas foram vaiados e, mais grave, Diego Costa foi perseguido
durante todo o jogo da Espanha por ter escolhido jogar pela seleção
ibérica em detrimento da brasileira (e não havia nada que o
garantisse na convocação de Felipão). Isso sim é uma demonstração
de tacanhice, de falta de maturidade, de bairrismo, alienação e
intolerância. Além do mais, a hipocrisia dessa elite dos estádios
é de dar vergonha alheia. Dona Dilma (e Lula) fez uma Copa Padrão
FIFA de bandeja para essa elite mimada e ela ainda reclama? Graças
ao PT e seu conluio com a FIFA essa trupe jingoísta de bairros
nobres tem a oportunidade de se sentir na Europa sem sair do Brasil e
ela ainda fica com mimimi? Se tivessem feito uma Copa popular acessível ao
povão, essa elite higienista teria toda a razão em reclamar. Mas
não, são uns mal-agradecidos mesmo.
Mas não é só a elite
dentro dos estádios. O brasileiro comum não está muito acostumado
a lidar com estrangeiros e quando eles dão as caras em grande número
vem à tona a falta de fair play. Um argentino teve o dedo quebrado
quando passeava por Belo Horizonte com a bandeira do país vizinho e
se viu cercado por brasileiros que a tentaram arrancar das suas mãos.
Vários assaltos já foram feitos a estrangeiros nos últimos dias e
dentre as vítimas estão também jornalistas da imprensa
internacional. Já que, afinal, está tendo Copa, que ela seja
aproveitada para que as pessoas respeitem mais quem vem de fora e
para que se acostumem mais com a diferença. De resto, essa é a Copa
mais questionada e impopular da história. É a mais cara e a mais
polêmica. O único verdadeiro legado da Copa do Mundo do Brasil são
as manifestações e o surgimento de uma cultura de reivindicação
que desde Junho de 2013 se materializou em dezenas de novos
movimentos sociais. Tem havido demonstrações de solidariedade com
protestos anti-FIFA um pouco por todo o mundo. No dia da abertura, a
imprensa do mundo inteiro dava mais destaque ao duelo travado nas
ruas de inúmeras cidades brasileiras entre manifestantes e polícia
do que ao pontapé inicial em si. Foi uma enorme vitória do
#NãoVaiTerCopa.
Agora é esperar que a
seleção da CBF seja logo eliminada.
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