Já há
algum tempo que deixei de acreditar que ideologia define caráter.
Bem, com algumas óbvias exceções, claro. Parece-me impossível
haver um neo-nazista que seja boa pessoa. Mas esse é um caso extremo
que se não caracteriza, pelo menos beira a patologia. A minha
observação é sobretudo nas ideologias que têm ao menos um mínimo
elemento harmônico na sua concepção de vida em sociedade e, dentre
elas, pego no espectro político para definir dois campos bem
abrangentes: o campo Socialista e o campo Capitalista, por assim
dizer. Claro que muita gente torce o nariz para a utilização desses
termos, mas eles servem bem para a minha reflexão. Há alguns anos,
quando eu era muito apaixonado pelas ideias e pouco maduro, não me
restavam dúvidas de que qualquer pessoa que se assumisse como sendo
de Direita ou defensora do Capitalismo era, automaticamente, minha
inimiga mortal e não merecia mais do que o meu repúdio mais
histérico. Por outro lado, quase que como por efeito, qualquer
pessoa assumidamente de Esquerda ou Socialista (atenção, não
utilizo Esquerda e Socialismo como sinônimos) era, na pior das
hipóteses, cheia de boas intenções, e por mais que demonstrasse
algumas falhas de caráter, o abono das ideias sempre suavizava
qualquer reprovação.
Hoje não
penso mais assim. Não sei exatamente o que me fez mudar. Uns dirão
que foi a idade, outros dirão que foi a formação acadêmica
científica e com apelo à razão. Outros poderão dizer que já não
sinto as ideias como dantes, como quando as ia desvendando pouco a
pouco. Pode ser, mas não creio. Não me cansei da política e
continuo cada vez mais interessado por ela. Depois de refletir um
pouco, passei a apostar na hipótese de que o que me transformou numa
pessoa politicamente tolerante foi exatamente o meu interesse pela
política, ou seja, o meu enorme gosto em debater ideias, em abordar
problemáticas, aprofundar pensamentos e, sobretudo, confrontar-me
com concepções opostas não apenas para superá-las, mas para
aprender com elas. Acho que essa foi a postura mais inteligente que
já assumi enquanto indivíduo politizado.
Isso não
quer dizer que eu não tenha uma ideologia. Muito pelo contrário.
Certa vez, há muito tempo, perguntado pela mãe de um amigo de
classe média alta se eu era de esquerda, respondi-lhe, no fervor da
juventude, que era anarquista. Eu já sabia muito bem o que o
anarquismo significava, já tinha lido algumas coisas de Bakunin e
Proudhon e estava tentando convencer-me a mim próprio a não
desistir de ler O Capital de Marx (acabei por desistir porque era
muito longo e chatíssimo para uma mente de 18 anos). A mãe do meu
amigo disse, num contra-ataque fulminante e implacável, que eu ainda
era muito novo e que, amadurecendo, esqueceria essa tolice. Hoje, 13 anos depois, já com uma preocupante quantidade de cabelos brancos na
cabeça, continuo achando que o anarquismo é a melhor ideia de
organização da sociedade já concebida pela mente humana. Não é
perfeita, porque, afinal, é humana. Mas é a ideia mais avançada do
ponto de vista ético e mais justa do ponto de vista social. Se é
viável ou não, creio ser uma questão de tempo e de evolução
constante. Ah! Sim, essa é uma das minhas grandes divergências
metodológicas com outros anarquistas. Eu não acredito na revolução.
Quer dizer, acreditar nela como retórica ou mesmo como pressão
social, acredito. Não digo que não considero a revolução
necessária. Não é isso. Mas não vejo como uma revolução pode
ser viável atualmente. O grande perigo de um processo revolucionário
nos dias atuais é ele acabar numa ditadura de interesses
diametralmente opostos aos que a provocaram. Sou um reformista? Não!
Tenho alergia dessa trupe, até. Mas não me incluo no grupo dos que
metodologicamente defendem a revolução aos moldes do século XIX.
Vivemos noutro tempo. E temos muito para comemorar, porque se por um
lado é verdade que não conseguimos concretizar as nossas revoluções
(a perda da mais profunda delas, a espanhola, ainda é muito
dolorosa), por outro lado as tentativas de as provocarmos fizeram com
que as sociedades avançassem e chegassem ao que temos hoje, que
apesar de todos os apesares (e são muitos) é algo muito melhor do
que o que existia há cem anos. Evolução! Mas uma evolução só
possível pela insistência dos revolucionários mais apressados. É
nisso que eu me incluo. Sou um evolucionário. Eu não quero apenas a
revolução nas ruas, com violência e destruição da sociedade
doente vigente. Eu quero a mudança a partir das mentalidades. Não
basta tomarmos as ruas. Precisamos tomar as ruas sabendo o que fazer.
Não basta derrubarmos o poder quando toda a estrutura mental da
sociedade só está preparada para substituir um poder por outro.
Enfim. Esta é uma divagação anarquista que até se abrange às
perspectivas da Esquerda em geral, mas não é o meu ponto. O
importante era eu dizer que sim, que sou um idealista e não quero
convencer a ninguém de que sou neutro ou imparcial, como também
ninguém me convencerá do mesmo. Somos todos parciais!
Onde quero
chegar? O título do texto não está errado. Quero chegar ao PT, o
Partido dos Trabalhadores, que atualmente é o partido que lidera a
confusa e heterogênea coligação governista no Brasil. Quando o PT
chegou ao poder, eu pensei que somente o melhor do caráter humano
poderia ser aproveitado para transformar o Brasil. Também pensei que
Lula não fosse se reciclar tanto. Mas tudo bem. Antes com Lula e
agora com Dilma, o PT apresentou seus projetos e teve seus méritos.
E atenção: eu reconheço as melhoras que o Brasil teve. Elas não
são tão grandes quanto os petistas publicitam e nem tão pequenas
quanto a oposição vocifera. Houve avanços. Do meu ponto de vista,
foram insuficientes, mas eles existiram. O problema é o esgotamento
político do PT, o seu esvaziamento ideológico e o seu total (eu
diria até pornográfico) compromisso com a conveniência da
governância. O PT deixou de governar com base num projeto social e
passou a governar como uma máquina burocrática que tem espasmos só
de ponderar a possibilidade de perder a posição que ostenta no
poder federal. O PT governa para ser governo. E governa para seus
padrinhos, para seus patrocinadores. Isto é o PT; um partido como
todos os outros. Há gente boa e bem intencionada lá dentro? Há!
Como há em quase todos os partidos. Nos de direita também. É
razoável pensar que o caráter é cultivado à direita tanto quanto
à esquerda. As ideias são outra coisa. "Outros quinhentos",
como se diz na gíria.
Qual é,
afinal, o meu problema com o PT? Bem, meu problema é bem mais com a
base petista. Do PT eu não espero mais do que o que eu espero dos
outros partidos grandes. O PT está longe de ser socialista e mais
ainda de ser comunista. O PT gere um país capitalista que, durante a
última década, tentou (graças ao PT) implantar uma tímida
social-democracia. Bem mais tímida do que a social-democracia dos
países europeus, muitos dos quais governados por partidos de
direita, diga-se. Ah! Sim, atualmente é complicado falar de Welfare
State na Europa devido ao advento da crise. Mas acho que deu para
perceber onde quero chegar.
O problema
está na base petista. Ou pelo menos em parte dela. Quando eu vejo
pessoas mentindo descaradamente e com orgulho, eu sinto que há algo
muito errado. A mentira é menos grave por ser uma mentira de
esquerda? Quando eu vejo gente que se diz "socialista"
gritar em favor do bastão da polícia contra manifestantes de
movimentos sociais, parece-me haver uma distorção enorme na cabeça
dessas pessoas. Quando eu vejo gente de esquerda que sofreu com a
ditadura militar dizendo agora que "quem não gosta do Brasil
que se mude para outro país", eu fico com muita raiva. Para quem não sabe, "Brasil, ame-o ou deixe-o" foi talvez o lema mais simbólico da ditadura dos generais. O que há com essa gente?
O
comportamento de muitos petistas tem sido o mesmo de um adepto de um
clube de futebol ou de um fanático religioso. O PT se transformou,
para eles, numa religião. Tudo o que o PT diz é verdade. A verdade
só pertence ao PT e a oposição, seja de direita, seja de esquerda,
é mentirosa, rancorosa, canalha, "coxinha", antipatriota.
Qualquer notícia desfavorável ao PT é mentira produzida pela mídia
golpista de direita ou dos arruaceiros mascarados. Qualquer
estatística tirada do site do PT ou do governo federal é verdade
absoluta. Quer saber a verdade? Quer ser bem informado? Beba na fonte
do PT, lá está tudo o que você precisa saber. Aliás, esses
petistas não gostam dos EUA e dos políticos de lá, mas quando um deles
aparece dizendo algo minimamente favorável sobre o Brasil atual,
eles nos inundam com suas referências à notícia, pois até a
pessoa menos credível passa a ter credibilidade automática quando
elogia o PT.
O fanatismo
religioso ao PT atinge o nível da vergonha alheia. Eu vejo gente que
sempre foi a favor da liberalização das drogas fazendo campanha ad
hominem contra uma das principais figuras da oposição nos seguintes
termos: "Como? Um candidato envolvido com cocaína até às
narinas pode ser presidente da república? Fora tucanalhas!".
Quer dizer que esse pessoal faz propaganda pela marijuana, fuma seus
baseados com orgulho, não se preocupa com os porres etílicos de Lula, mas se torna o maior moralista quando alguém da oposição
faz, presumivelmente, o mesmo uso que eles fazem da alucinogenia? É
que uma coisa é acusar Aécio Neves de estar ligado ao tráfico,
outra coisa é condená-lo pelo uso de drogas. Para esses petistas,
suas bandeiras só são hasteadas quando lhes convêm. Quando o vento
sopra do outro lado, elas são recolhidas.
E a Copa do
Mundo? Há uns anos, o típico militante petista era moderadamente
averso aos exageros futebolísticos. Hoje, há essa trupe que coloca
a seleção brasileira acima dos movimentos sociais e a Copa do Mundo
acima das reivindicações populares. E passam isso na cara dos
outros com orgulho! Falam da seleção com comoção. Nunca gostaram
tanto de futebol como agora. Se, por acaso, a Copa tivesse sido um
projeto do PSDB, esses petistas seriam os maiores opositores ao
evento e estariam nas ruas acusando os tucanos de desviar dinheiro
para projetos desportivos megalômanos enquanto deixam os serviços
básicos sucateados. É que só o PT pode! E consideram a Copa do
Mundo uma genialidade de Lula, quando os países mais ricos se
afastaram oportunamente desses megaeventos (quando a crise econômica
deu as caras) e os relegaram aos ingênuos com manias de grandeza
(depois do Brasil será a vez da Rússia e do Catar, saindo
totalmente da rota tradicional). A Copa do Mundo
sofreu o mesmo fenômeno das fábricas: foi deslocada para países
com governos mais corruptos e direitos laborais mais flexíveis.
E quando
criticam a bancada evangélica? Sim, aquela bancada asquerosa,
nojenta, execrável e repugnante formada por mentes teocráticas e
totalitárias. Não estou sendo irônico! Considero-os mesmo isto
tudo. Os evangélicos envolvidos na política são uma das maiores
ameaças à sociedade brasileira. Mas esses tais petistas criticam-na
pelo seu fanatismo enquanto reproduzem exatamente o mesmo. A
diferença é que em vez do culto a Jesus fazem culto a Lula, a Dilma
e ao partidão. O partidão que tudo pode. O partidão que está
acima da lei, da moral, da ética, da verdade e do questionamento.
O que dizer
dessa gente? Onde está o seu caráter quando mentem com orgulho,
quando se negam ao debate polido, quando rejeitam arrogantemente a
autocrítica, quando adotam a postura daqueles que eles próprios
criticam para se armarem no embate político, quando varrem para
debaixo do tapete todos os problemas internos das suas fileiras,
quando se limitam aos ataques ad hominem, às falácias e às
conclusões superficiais repletas de lugar comum e clichê? Onde está
o caráter de quem atropela o bom senso e simplesmente ignora os
avisos de que está alimentando equívocos ou inverdades? Onde está
o caráter dos que colocam o partido acima da concertação social e
dos interesses do país?
Quando eu
assumi uma postura mais racional e menos emocional na abordagem
política, algo me veio à tona como sendo da mais elevada
importância: a autocrítica. Sem autocrítica dificilmente
encontramos um caráter saudável. Sem autocrítica, ideologias,
partidos ou indivíduos não evoluem e não criam discernimento. A
autocrítica é o que falta a esses petistas para recuperarem o
caráter perdido. Se é que alguma vez o tiveram.
Ideologia ou
partido não define caráter. Esta é uma das maiores lições da
política. A outra, a ser aprendida por todos, é desenvolvermos um
compromisso íntimo connosco próprios. Esse compromisso passa,
inevitavelmente, pela autocrítica. Quem tiver coragem de fazê-la
terá o meu respeito por mais distante que esteja de mim
ideologicamente. E os meus "camaradas" que não a fizeram
dificilmente terão a minha confiança ou serão levados a sério.
gostei do texto, amanhã vou reler para fazer outra análise
ReplyDeleteTexto muito explícito e bem endereçado. Os petistas que reflitam e vejam as suas próprias contradições!
ReplyDeleteGostei do texto. A análise dos petistas xiitas é precisa, embora eu, particularmente, não me daria ao trabalho de gastar tanto tempo discorrendo sobre eles. São ridículos. Só tenho uma ressalva a fazer num ponto: não tem como a social-democracia brasileira ser comparada à européia, já que o estado de bem estar social de lá foi montado com a ajuda maciça dos americanos, via plano Marshall, para combater o avanço do “comunismo” (ênfase nas aspas, pq é na verdade a versão stalinista do termo, o chamado “socialismo real”). Por aqui o processo é BEEEEM mais difícil e tortuoso. Nesse sentido, os avanços conseguidos pelo governo do PT – que você definiu também de forma precisa como não tão grandes como os governistas nos fazem crer nem tão insignificantes quanto os oposicionistas também tentam nos convencer – precisam ser valorizados, para que não haja recuo. Para que se avance. É, como disse, um processo tortuoso, e no ambiente de radicalização em que vivemos – natural também, as tensões sociais sempre aumentem em tempos de crise – qualquer defesa desses avanços vai ser sempre interpretada como defesa incondicional do governo. Se torna quase impossível ter uma posição de apoio crítico ao governo, o que eu acho lamentável, porque é o meu caso. Quero que o processo avance, não retroceda! E uma eventual volta do PSDB seria, a meu ver, um retrocesso. Por isso sempre que o Fla x flu está posto, acabo optando pelo PT, mas costumo, no primeiro turno das eleições, buscar outras opções. Em 2006 votei em Christovam Buarque, do PDT, e em 2010, em Plínio de Arruda Sampaio, do PSOL. Mas nos respectivos segundos turnos, fui de Lula e Dilma mesmo. E não me arrependi.
ReplyDeletePor fim, a ressalva final: está mais do que evidente e na cara que sem uma reforma política que implante, PELO MENOS, o financiamento publico de campanha, continuará sendo muito difícil, senão impossível, avançar nas reformas rumo a uma sociedade mais justa. Do jeito que está, as eleições são viciadas e comandadas pelo poderio econômico. Acho difícil que haja uma reforma, já que os legisladores teriam que modificar um sistema que os beneficia. Se alguma coisa fizer com que ela saia do papel, será a pressão popular. Para isso é preciso que a pressão das massas tenha FOCO, senão se dispersa e não dá em nada. É daí que vem a critica à falta de uma liderança mais clara nas manifestações de junho do ano passado.
Bom, fico por aqui, porque o assunto é extenso demais e é domingo e eu vou sair da internet pra aproveitar um pouco o que ainda me resta de “vida real”.
Um grande abraço, Juliano.