Saturday, June 7, 2014

Uma Religião chamada PT


Já há algum tempo que deixei de acreditar que ideologia define caráter. Bem, com algumas óbvias exceções, claro. Parece-me impossível haver um neo-nazista que seja boa pessoa. Mas esse é um caso extremo que se não caracteriza, pelo menos beira a patologia. A minha observação é sobretudo nas ideologias que têm ao menos um mínimo elemento harmônico na sua concepção de vida em sociedade e, dentre elas, pego no espectro político para definir dois campos bem abrangentes: o campo Socialista e o campo Capitalista, por assim dizer. Claro que muita gente torce o nariz para a utilização desses termos, mas eles servem bem para a minha reflexão. Há alguns anos, quando eu era muito apaixonado pelas ideias e pouco maduro, não me restavam dúvidas de que qualquer pessoa que se assumisse como sendo de Direita ou defensora do Capitalismo era, automaticamente, minha inimiga mortal e não merecia mais do que o meu repúdio mais histérico. Por outro lado, quase que como por efeito, qualquer pessoa assumidamente de Esquerda ou Socialista (atenção, não utilizo Esquerda e Socialismo como sinônimos) era, na pior das hipóteses, cheia de boas intenções, e por mais que demonstrasse algumas falhas de caráter, o abono das ideias sempre suavizava qualquer reprovação.

Hoje não penso mais assim. Não sei exatamente o que me fez mudar. Uns dirão que foi a idade, outros dirão que foi a formação acadêmica científica e com apelo à razão. Outros poderão dizer que já não sinto as ideias como dantes, como quando as ia desvendando pouco a pouco. Pode ser, mas não creio. Não me cansei da política e continuo cada vez mais interessado por ela. Depois de refletir um pouco, passei a apostar na hipótese de que o que me transformou numa pessoa politicamente tolerante foi exatamente o meu interesse pela política, ou seja, o meu enorme gosto em debater ideias, em abordar problemáticas, aprofundar pensamentos e, sobretudo, confrontar-me com concepções opostas não apenas para superá-las, mas para aprender com elas. Acho que essa foi a postura mais inteligente que já assumi enquanto indivíduo politizado.

Isso não quer dizer que eu não tenha uma ideologia. Muito pelo contrário. Certa vez, há muito tempo, perguntado pela mãe de um amigo de classe média alta se eu era de esquerda, respondi-lhe, no fervor da juventude, que era anarquista. Eu já sabia muito bem o que o anarquismo significava, já tinha lido algumas coisas de Bakunin e Proudhon e estava tentando convencer-me a mim próprio a não desistir de ler O Capital de Marx (acabei por desistir porque era muito longo e chatíssimo para uma mente de 18 anos). A mãe do meu amigo disse, num contra-ataque fulminante e implacável, que eu ainda era muito novo e que, amadurecendo, esqueceria essa tolice. Hoje, 13 anos depois, já com uma preocupante quantidade de cabelos brancos na cabeça, continuo achando que o anarquismo é a melhor ideia de organização da sociedade já concebida pela mente humana. Não é perfeita, porque, afinal, é humana. Mas é a ideia mais avançada do ponto de vista ético e mais justa do ponto de vista social. Se é viável ou não, creio ser uma questão de tempo e de evolução constante. Ah! Sim, essa é uma das minhas grandes divergências metodológicas com outros anarquistas. Eu não acredito na revolução. Quer dizer, acreditar nela como retórica ou mesmo como pressão social, acredito. Não digo que não considero a revolução necessária. Não é isso. Mas não vejo como uma revolução pode ser viável atualmente. O grande perigo de um processo revolucionário nos dias atuais é ele acabar numa ditadura de interesses diametralmente opostos aos que a provocaram. Sou um reformista? Não! Tenho alergia dessa trupe, até. Mas não me incluo no grupo dos que metodologicamente defendem a revolução aos moldes do século XIX. Vivemos noutro tempo. E temos muito para comemorar, porque se por um lado é verdade que não conseguimos concretizar as nossas revoluções (a perda da mais profunda delas, a espanhola, ainda é muito dolorosa), por outro lado as tentativas de as provocarmos fizeram com que as sociedades avançassem e chegassem ao que temos hoje, que apesar de todos os apesares (e são muitos) é algo muito melhor do que o que existia há cem anos. Evolução! Mas uma evolução só possível pela insistência dos revolucionários mais apressados. É nisso que eu me incluo. Sou um evolucionário. Eu não quero apenas a revolução nas ruas, com violência e destruição da sociedade doente vigente. Eu quero a mudança a partir das mentalidades. Não basta tomarmos as ruas. Precisamos tomar as ruas sabendo o que fazer. Não basta derrubarmos o poder quando toda a estrutura mental da sociedade só está preparada para substituir um poder por outro. Enfim. Esta é uma divagação anarquista que até se abrange às perspectivas da Esquerda em geral, mas não é o meu ponto. O importante era eu dizer que sim, que sou um idealista e não quero convencer a ninguém de que sou neutro ou imparcial, como também ninguém me convencerá do mesmo. Somos todos parciais!

Onde quero chegar? O título do texto não está errado. Quero chegar ao PT, o Partido dos Trabalhadores, que atualmente é o partido que lidera a confusa e heterogênea coligação governista no Brasil. Quando o PT chegou ao poder, eu pensei que somente o melhor do caráter humano poderia ser aproveitado para transformar o Brasil. Também pensei que Lula não fosse se reciclar tanto. Mas tudo bem. Antes com Lula e agora com Dilma, o PT apresentou seus projetos e teve seus méritos. E atenção: eu reconheço as melhoras que o Brasil teve. Elas não são tão grandes quanto os petistas publicitam e nem tão pequenas quanto a oposição vocifera. Houve avanços. Do meu ponto de vista, foram insuficientes, mas eles existiram. O problema é o esgotamento político do PT, o seu esvaziamento ideológico e o seu total (eu diria até pornográfico) compromisso com a conveniência da governância. O PT deixou de governar com base num projeto social e passou a governar como uma máquina burocrática que tem espasmos só de ponderar a possibilidade de perder a posição que ostenta no poder federal. O PT governa para ser governo. E governa para seus padrinhos, para seus patrocinadores. Isto é o PT; um partido como todos os outros. Há gente boa e bem intencionada lá dentro? Há! Como há em quase todos os partidos. Nos de direita também. É razoável pensar que o caráter é cultivado à direita tanto quanto à esquerda. As ideias são outra coisa. "Outros quinhentos", como se diz na gíria.

Qual é, afinal, o meu problema com o PT? Bem, meu problema é bem mais com a base petista. Do PT eu não espero mais do que o que eu espero dos outros partidos grandes. O PT está longe de ser socialista e mais ainda de ser comunista. O PT gere um país capitalista que, durante a última década, tentou (graças ao PT) implantar uma tímida social-democracia. Bem mais tímida do que a social-democracia dos países europeus, muitos dos quais governados por partidos de direita, diga-se. Ah! Sim, atualmente é complicado falar de Welfare State na Europa devido ao advento da crise. Mas acho que deu para perceber onde quero chegar.

O problema está na base petista. Ou pelo menos em parte dela. Quando eu vejo pessoas mentindo descaradamente e com orgulho, eu sinto que há algo muito errado. A mentira é menos grave por ser uma mentira de esquerda? Quando eu vejo gente que se diz "socialista" gritar em favor do bastão da polícia contra manifestantes de movimentos sociais, parece-me haver uma distorção enorme na cabeça dessas pessoas. Quando eu vejo gente de esquerda que sofreu com a ditadura militar dizendo agora que "quem não gosta do Brasil que se mude para outro país", eu fico com muita raiva. Para quem não sabe, "Brasil, ame-o ou deixe-o" foi talvez o lema mais simbólico da ditadura dos generais. O que há com essa gente?

O comportamento de muitos petistas tem sido o mesmo de um adepto de um clube de futebol ou de um fanático religioso. O PT se transformou, para eles, numa religião. Tudo o que o PT diz é verdade. A verdade só pertence ao PT e a oposição, seja de direita, seja de esquerda, é mentirosa, rancorosa, canalha, "coxinha", antipatriota. Qualquer notícia desfavorável ao PT é mentira produzida pela mídia golpista de direita ou dos arruaceiros mascarados. Qualquer estatística tirada do site do PT ou do governo federal é verdade absoluta. Quer saber a verdade? Quer ser bem informado? Beba na fonte do PT, lá está tudo o que você precisa saber. Aliás, esses petistas não gostam dos EUA e dos políticos de lá, mas quando um deles aparece dizendo algo minimamente favorável sobre o Brasil atual, eles nos inundam com suas referências à notícia, pois até a pessoa menos credível passa a ter credibilidade automática quando elogia o PT.

O fanatismo religioso ao PT atinge o nível da vergonha alheia. Eu vejo gente que sempre foi a favor da liberalização das drogas fazendo campanha ad hominem contra uma das principais figuras da oposição nos seguintes termos: "Como? Um candidato envolvido com cocaína até às narinas pode ser presidente da república? Fora tucanalhas!". Quer dizer que esse pessoal faz propaganda pela marijuana, fuma seus baseados com orgulho, não se preocupa com os porres etílicos de Lula, mas se torna o maior moralista quando alguém da oposição faz, presumivelmente, o mesmo uso que eles fazem da alucinogenia? É que uma coisa é acusar Aécio Neves de estar ligado ao tráfico, outra coisa é condená-lo pelo uso de drogas. Para esses petistas, suas bandeiras só são hasteadas quando lhes convêm. Quando o vento sopra do outro lado, elas são recolhidas.

E a Copa do Mundo? Há uns anos, o típico militante petista era moderadamente averso aos exageros futebolísticos. Hoje, há essa trupe que coloca a seleção brasileira acima dos movimentos sociais e a Copa do Mundo acima das reivindicações populares. E passam isso na cara dos outros com orgulho! Falam da seleção com comoção. Nunca gostaram tanto de futebol como agora. Se, por acaso, a Copa tivesse sido um projeto do PSDB, esses petistas seriam os maiores opositores ao evento e estariam nas ruas acusando os tucanos de desviar dinheiro para projetos desportivos megalômanos enquanto deixam os serviços básicos sucateados. É que só o PT pode! E consideram a Copa do Mundo uma genialidade de Lula, quando os países mais ricos se afastaram oportunamente desses megaeventos (quando a crise econômica deu as caras) e os relegaram aos ingênuos com manias de grandeza (depois do Brasil será a vez da Rússia e do Catar, saindo totalmente da rota tradicional). A Copa do Mundo sofreu o mesmo fenômeno das fábricas: foi deslocada para países com governos mais corruptos e direitos laborais mais flexíveis.

E quando criticam a bancada evangélica? Sim, aquela bancada asquerosa, nojenta, execrável e repugnante formada por mentes teocráticas e totalitárias. Não estou sendo irônico! Considero-os mesmo isto tudo. Os evangélicos envolvidos na política são uma das maiores ameaças à sociedade brasileira. Mas esses tais petistas criticam-na pelo seu fanatismo enquanto reproduzem exatamente o mesmo. A diferença é que em vez do culto a Jesus fazem culto a Lula, a Dilma e ao partidão. O partidão que tudo pode. O partidão que está acima da lei, da moral, da ética, da verdade e do questionamento.

O que dizer dessa gente? Onde está o seu caráter quando mentem com orgulho, quando se negam ao debate polido, quando rejeitam arrogantemente a autocrítica, quando adotam a postura daqueles que eles próprios criticam para se armarem no embate político, quando varrem para debaixo do tapete todos os problemas internos das suas fileiras, quando se limitam aos ataques ad hominem, às falácias e às conclusões superficiais repletas de lugar comum e clichê? Onde está o caráter de quem atropela o bom senso e simplesmente ignora os avisos de que está alimentando equívocos ou inverdades? Onde está o caráter dos que colocam o partido acima da concertação social e dos interesses do país?

Quando eu assumi uma postura mais racional e menos emocional na abordagem política, algo me veio à tona como sendo da mais elevada importância: a autocrítica. Sem autocrítica dificilmente encontramos um caráter saudável. Sem autocrítica, ideologias, partidos ou indivíduos não evoluem e não criam discernimento. A autocrítica é o que falta a esses petistas para recuperarem o caráter perdido. Se é que alguma vez o tiveram.


Ideologia ou partido não define caráter. Esta é uma das maiores lições da política. A outra, a ser aprendida por todos, é desenvolvermos um compromisso íntimo connosco próprios. Esse compromisso passa, inevitavelmente, pela autocrítica. Quem tiver coragem de fazê-la terá o meu respeito por mais distante que esteja de mim ideologicamente. E os meus "camaradas" que não a fizeram dificilmente terão a minha confiança ou serão levados a sério. 

3 comments:

  1. gostei do texto, amanhã vou reler para fazer outra análise

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  2. Texto muito explícito e bem endereçado. Os petistas que reflitam e vejam as suas próprias contradições!

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  3. Gostei do texto. A análise dos petistas xiitas é precisa, embora eu, particularmente, não me daria ao trabalho de gastar tanto tempo discorrendo sobre eles. São ridículos. Só tenho uma ressalva a fazer num ponto: não tem como a social-democracia brasileira ser comparada à européia, já que o estado de bem estar social de lá foi montado com a ajuda maciça dos americanos, via plano Marshall, para combater o avanço do “comunismo” (ênfase nas aspas, pq é na verdade a versão stalinista do termo, o chamado “socialismo real”). Por aqui o processo é BEEEEM mais difícil e tortuoso. Nesse sentido, os avanços conseguidos pelo governo do PT – que você definiu também de forma precisa como não tão grandes como os governistas nos fazem crer nem tão insignificantes quanto os oposicionistas também tentam nos convencer – precisam ser valorizados, para que não haja recuo. Para que se avance. É, como disse, um processo tortuoso, e no ambiente de radicalização em que vivemos – natural também, as tensões sociais sempre aumentem em tempos de crise – qualquer defesa desses avanços vai ser sempre interpretada como defesa incondicional do governo. Se torna quase impossível ter uma posição de apoio crítico ao governo, o que eu acho lamentável, porque é o meu caso. Quero que o processo avance, não retroceda! E uma eventual volta do PSDB seria, a meu ver, um retrocesso. Por isso sempre que o Fla x flu está posto, acabo optando pelo PT, mas costumo, no primeiro turno das eleições, buscar outras opções. Em 2006 votei em Christovam Buarque, do PDT, e em 2010, em Plínio de Arruda Sampaio, do PSOL. Mas nos respectivos segundos turnos, fui de Lula e Dilma mesmo. E não me arrependi.

    Por fim, a ressalva final: está mais do que evidente e na cara que sem uma reforma política que implante, PELO MENOS, o financiamento publico de campanha, continuará sendo muito difícil, senão impossível, avançar nas reformas rumo a uma sociedade mais justa. Do jeito que está, as eleições são viciadas e comandadas pelo poderio econômico. Acho difícil que haja uma reforma, já que os legisladores teriam que modificar um sistema que os beneficia. Se alguma coisa fizer com que ela saia do papel, será a pressão popular. Para isso é preciso que a pressão das massas tenha FOCO, senão se dispersa e não dá em nada. É daí que vem a critica à falta de uma liderança mais clara nas manifestações de junho do ano passado.

    Bom, fico por aqui, porque o assunto é extenso demais e é domingo e eu vou sair da internet pra aproveitar um pouco o que ainda me resta de “vida real”.

    Um grande abraço, Juliano.

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