Mesmo
nas sociedades ocidentais, nos países mais abertos e com população
mais esclarecida, há ideias ainda consideradas intocáveis ou
superprotegidas. Alguns conceitos estão revestidos de um escudo
permanente inquebrável, mesmo tendo um desconhecido fundamento para maioria das pessoas.
Eles
chegam a beirar o dogmatismo e moldam comportamentos. A religião,
felizmente, deixou de ser inquestionável, embora suas instituições
continuem sendo injustificadamente superprotegidas.
A
autoridade, a democracia representativa, o voto, o trabalho. Todos
superprotegidos e praticamente imaculados. Questioná-los é quase
considerado um desvio de caráter. Mas todos merecem análise
cuidada. Todos podem ser desconstruídos à luz do que de mais
avançado há na ética e na sociologia.
Mas
mais do que os conceitos referidos ou que quaisquer outros, há um
cuja proteção beira a intolerância e a total irracionalidade, além
de ser substancialmente dogmático: o patriotismo.
Alguém
já viu o patriotismo ser questionado? Não me refiro a falar mal do
país de origem devido a uma crise, à corrupção dos políticos ou
a maus resultados desportivos. Estou falando do conceito em si. Da
ideia por detrás da palavra.
O
patriotismo é uma das maiores aberrações criadas pela humanidade e
continua aí, vigorando como se de algo sublime se tratasse. Em nome
do patriotismo (nacionalismo, na variante ideológica) foram
cometidas as maiores barbaridades ao longo de toda a história. Em
nome dele e do provincianismo e bairrismo que despoleta, povos
puseram-se uns contra os outros, travaram guerras sangrentas,
tentaram justificar dominações, rapinagens e imperialismos. O
patriotismo também é alavanca da xenofobia, do racismo e da
eugenia.
Como
uma ideia tão horrenda e violenta pôde permanecer mesmo nas
sociedades mais avançadas como algo louvável, positivo e saudável?
Em muitas partes do mundo ainda se mata e se morre por ela. Os países
com mais anseios belicistas sequestram seus jovens e dizem-lhes que é
motivo de orgulho morrer pela Pátria. Onde não há guerras,
questões históricas de conflitos territoriais continuam alimentando
rivalidades entre vizinhos. Na Europa podemos senti-las ainda hoje ao
longo de todo o continente: Portugal e Espanha, França e Alemanha,
Polônia e Lituânia, Hungria e Eslováquia, Itália e Eslovênia,
Grécia e Turquia, Estônia e Rússia, Inglaterra e Escócia. E há
muito mais. O que dizer da ex-Iugoslávia? Todas remetem a
acontecimentos políticos de disputas de povos e territórios, mas
ainda hoje suas feridas alimentam reações jingoístas e mesmo que
muitas só sejam sentidas em larga escala no contexto desportivo,
elas existem e continuam moldando as mentalidades. Pior do que isso é
ver a aberração que se tornou a União Europeia. O pressuposto de
uma estirpe comum é tão enganador quanto o nome da instituição,
que celebra em seu seio um implacável banquete canibal.
Do
outro lado do Atlântico, a Sul, há a estúpida guerrinha entre
Brasil e Argentina, alimentada pela mídia de ambos os países no
contexto futebolístico, mas que o transborda. No Brasil, todo mundo
sabe que argentino não presta, que é inimigo. A explicação não
vai além da raiva ao Maradona, ao Caniggia ou ao temível Boca
Juniors, carrasco de clubes brasileiros na Libertadores da América.
Nos
últimos anos os imigrantes bolivianos viraram alvo de xenofobia,
enquanto os paraguaios recebem status de povo especialista em
contrafação e são sinônimo de tudo o que é falso. Nós,
brasileiros, somos nojentamente arrogantes em relação aos nossos
vizinhos sul-americanos. Descarregamos neles toda a humilhação que
nos é imposta pelos “gringos”.
E é
assim mundo afora, aqui e acolá. Quem faz o contraponto ao rebanho
jingoísta leva logo com o “argumento” do patriotismo. Dizem que
devemos ter orgulho do nosso país, da nossa bandeira, da nossa
história. Devemos proteger “os nossos”.
Eu
faço questão de ir na contramão dessa ideia perversa. Em
primeiríssimo lugar, é absurdo ter orgulho no acaso e o fato de
termos nascido neste ou naquele país é fruto do mais puro acaso.
Escolhemos onde nascemos? Népia! Em segundo lugar, não há
absolutamente NADA para se orgulhar da nossa bandeira e do nosso
passado enquanto nação. TODOS os países carregam sangue e terror
em seus símbolos nacionais. Todas as bandeiras nacionais deveriam
ter a cor vermelha. Nem que fosse apenas um pingo minúsculo. Se
querem representar as fundações dos países em trapos coloridos,
que o façam coerentemente. Não há países inocentes. Povos
edificaram-se sobre outros povos, sempre carregando essa ideia de
“nós”, de “nosso”. O país onde nasci, Brasil, tem um
passado curto, mas o que há é tão vergonhoso quanto o presente. O
caso de Portugal é ainda pior. A pátria lusitana tem uma história
imperialista que é, incompreensivelmente, romantizada e glorificada
no próprio hino nacional. Retirando toda essa cobertura alegórica,
o passado de Portugal é tão bárbaro quanto o III Reich. Sim, é!
Não adianta dizerem que não ou se sentirem ofendido com tal
comparação. Os portugueses do período imperial rapinaram,
chacinaram e escravizaram outros povos. Sim, os portugueses de há
séculos fizeram isso, não os de agora. Vejam o lado positivo de
aceitarem a realidade, afinal não tiveram nada a ver com aquela
barbárie e não têm as mãos sujas de sangue, apenas exaltam
símbolos encharcados. O que houve foi um genocídio contra os
ameríndios e contra os africanos, que por sua vez se mataram entre
si mediante disputas tribais e conflitos territoriais criados pelo
imperialismo europeu. Tudo em nome do patriotismo. Do “nós”
contra “eles”.
O
patriotismo é tão grotesco que separa povos vizinhos para os unir a
outros mais distantes. Só assim um catalão pode se sentir mais
espanhol que francês. Só assim um trasmontano ou um minhoto podem
estar mais próximos de algarvios do que de galegos. O que dizer dos
brasileiros que habitam as longínquas fronteiras de toda extensão
Norte e Oeste e só têm contato com o centro da cultura dominante
brasileira através dos meios de comunicação massificados e
estupidificantes?
É
claro que há muito mais do que questões territoriais. Há traços
culturais, como a língua, evidentemente. Mas mesmo esses traços
foram moldados forçosamente no confinamento territorial dos povos e
em muitos casos os assemelham muito mais a quem está do outro lado
da fronteira do que a quem está noutras regiões de um mesmo quintal
com cerca embandeirada, como dizia Raul Seixas. A Península Ibérica
é um exemplo perfeito disso. Mas não pretendo adentrar em História.
O conceito de patriotismo é o meu alvo e para sentir repulsa dele
não precisamos recorrer ao passado, embora este a reforce
substancialmente.
O que
há de positivo no patriotismo? Como nos enriquece enquanto
indivíduos ou mesmo coletivamente? Afinal, quem se beneficia dele
além das elites políticas, militares e financeiras? Sim, mesmo as
financeiras! Num mundo globalizado é importante que os rebanhos
bradem pelos seus pastos. Assim, garante-se o jingoísmo festeiro. De
que outra forma se consegue justificar a rapina de tanto dinheiro
desviado para mega eventos desportivos? Como o parasitismo das elites
seria sustentado? Não apenas monarcas designados pelo divino.
Republicanos também. Como manteriam sociedades fortemente
verticalizadas sem os lacaios da união nacional? O patriotismo
consegue fazer os oprimidos aceitarem sua condição. É a maior
garantia de paz social e é para isto que de fato serve. Tão
comovente!
Numa
Europa em crise, é importante unir os povos em torno de suas
bandeirolas contra inimigos comuns estrangeiros. Para diminuir o
perigo da aversão às instituições europeias passar às vias de
fato, há sempre o apelo patriótico que vê no estrangeiro não
europeu um bode expiatório perfeito. Não é por acaso que os
períodos de crise despoletam mais xenofobia e mais evidência dos
movimentos nacionalistas. Sempre foi assim. O Fascismo e o Nazismo
foram alavancados por crises.
O
mais curioso é notar a distinção que as pessoas fazem entre
nacionalismo e patriotismo, quando o primeiro é apenas a
manifestação político-ideológica do segundo. O fundamento teórico
de ambos, que são um só, está assente na mesma ideia de Povo,
Cultura, Identidade e Nação. Dizem que nem todo patriota é
nacionalista. Claro que é! Todo patriota é nacionalista por
definição. O que querem dizer é que nem todo patriota transforma o
conceito em ideologia política. Felizmente!
Vou
aludir a algo bem pessoal para refutar o patriotismo. Formalmente,
sou brasileiro. Apesar de já não ter sequer passaporte ou
identidade tupiniquim. Sou brasileiro por ter nascido no Brasil e não
importa se vivo há quase 15 anos noutro lugar. Sou e sempre serei
brasileiro. Assim quis o acaso e devo me orgulhar dele (?). Mas mesmo
que nunca tivesse saído do Brasil, são muito mais as coisas que me
separam da esmagadora maioria do povo daquele país do que as que de
fato me unem a ele. Aliás, a minha repulsa pela sociedade e pela
cultura dominante brasileira não é mais fraca do que a minha
repulsa pelo patriotismo. O mesmo digo de Portugal, país onde vivi a
maior parte da minha vida adulta até então. Os patriotas que me
perdoem, mas se há um país com o qual eu me sinto identificado, é
a República Checa, mesmo sem assimilar muito bem a cultura desses
eslavos e ter problemas com o próprio idioma. Como me identifico?
Sei lá! Foi o país que escolhi, acho-o bonito e interessante e isso
para mim basta. Se tivesse que escolher entre Brasil, Portugal ou
República Tcheca, os dois primeiros explodiriam. Se houvesse uma
guerra e me obrigassem a lutar por um dos países contra os outros,
eu marcharia em nome de São Nepomuceno. Mentira! Fugiria e deixaria
que os lacaios se matassem em nome das elites e seus símbolos
nacionais. Em sã consciência, nunca daria a vida por nenhum país.
As bandeiras nacionais não valem mais do que meras peças
decorativas.
Recordo-me
dos meus primeiros esboços antipatrióticos. A Copa do Mundo é um
período especialmente irritante no Brasil. Tudo se tinge a verde e
amarelo e só se respira futebol. Em 1998, a Copa da França me fez
despertar sentimentos inéditos em relação à seleção e ao “meu
país”. Lembro-me especialmente do jogo das quartas-de-final entre
Brasil e Dinamarca. Eu tinha, desde tenra idade, uma admiração
inexplicável pela Dinamarca e pela Checoslováquia (optaria apenas
pela República Tcheca após a divisão com a Eslováquia). Eram as
minhas seleções de futebol favoritas e eu adorava futebol como
ninguém. Respirava-o! Às vésperas do jogo comecei a perguntar-me
por que raios deveria torcer pelo Brasil, se preferia a Dinamarca.
Adorava o nome do país, dos jogadores e achava o uniforme vermelho
muito mais belo. Por mais que quisesse sentir-me fiel à canarinha,
meu coração pendia para o lado dinamarquês. E foi o que assumi. No
dia do jogo pintei a bandeira dinamarquesa no rosto e sofri com a
derrota por 3x2 para a seleção da CBF. Foi a minha primeira
demonstração de antipatriotismo. Antes disso, recordo-me de
assistir aos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, e vibrar pelas
seleções brasileiras de vôlei e basquete perante comentários de
reprovação de mãe e tia, que sempre torciam contra, argumentando
que um país miserável e corrupto como o Brasil não merecia apoio.
Eu não entendia patavinas daquilo, mas talvez a semente tenha
ficado.
A
partir de então, nunca mais torci pela seleção brasileira. Quando
me mudei para Portugal, já simpatizava com o anarquismo (que é a
única ideologia que combate o patriotismo) e a minha aversão à
pátria passou a incluir também Portugal. O patriotismo português
sempre me pareceu mais aberrante que o brasileiro por um motivo
simples: enquanto o patriotismo brasileiro carrega uma roupagem
festeira e alienante, configurando um puro jingoísmo de massas à
deriva, o patriotismo português sempre me pareceu mais sério e
carregado de um injustificável orgulho pelos absurdos do passado.
Sempre me pareceu ser uma exaltação da raça, da identidade
nacional e do imperialismo, termos arrepiantes que me dão náusea.
Desde
os primeiros dias como imigrante reneguei o patriotismo português e
fui visto como um arrogante ou como um colonizado complexado. As
pessoas não compreendem nem aceitam a ideia de alguém estar-se
borrifando para a Pátria. Certa vez, num dos grandes protestos
contra a invasão do Iraque no Porto, um senhor veio perguntar-me o
que significava a bandeira portuguesa cortada com um X no meu casaco.
Respondi-lhe, na inocência da juventude, que era uma demonstração
contra as fronteiras do mundo. O velhote irritou-se e encheu-me de
insultos. Era, muito provavelmente, um membro do Partido Comunista
Português. Semanas depois, noutra daquelas manifestações, pus uma
bandeira portuguesa no meio da rua para os carros passarem sobre ela.
Um dos carros parou à sua frente até que fosse removida dali, numa
comovente demonstração de fidelidade a um símbolo nacional que
naqueles dias estava sujo de sangue iraquiano.
Como
imigrante antipatriota, enfrentei a fúria dos que não aceitam que
um estrangeiro negue a sua pátria. Parece senso comum que uma pessoa
só possa criticar o seu próprio país e respeitar
incondicionalmente os símbolos nacionais dos demais. Eu nunca
aceitei essa balela e nunca tive problemas em criticar Portugal para
um português ou a República Tcheca para um tcheco. Não é uma
questão de desrespeito gratuito. Simplesmente os símbolos nacionais
não têm nenhum valor especial para mim e o conceito de patriotismo
me dá asco, nojo. Como disse o escritor chileno Luís Sepúlveda, a
palavra patriotismo deveria desaparecer do dicionário.
De
todas as aberrações geradas pelo sentimento patriótico, talvez a
mais detestável seja o apoio incondicional a pessoas conterrâneas,
por mais execráveis que possam ser. Quem, em Portugal, não se
recorda de Durão Barroso, o famoso cherne? O ex-Primeiro-Ministro
português (também ex-maoísta reciclado politicamente a tempo para
virar parasita neoliberal e lacaio de Bush) que abandonou um Portugal
de “tanga”, como ele mesmo gostava de dizer, para chefiar a
Comissão Europeia em Bruxelas com um salário chorudo, era
respeitado e exaltado apenas por ser português. Diziam-me que era um
orgulho tê-lo à chefia da uma instituição europeia. Orgulho? Como
explicar isto? O sujeito encabeçou um governo catastrófico,
arrastou Portugal, contra a vontade da população, para um conflito
totalmente ilegal ao lado dos EUA, colocando o país na rota do
terrorismo islâmico, desfez o governo e fugiu para Bruxelas para
ganhar muito dinheiro. Orgulho desse imbecil? Sim, afinal ele é
português e isto basta!
Mas é
o futebol que gera mais culto irracional à personalidade. Em
Portugal há duas pessoas endeusadas: o treinador José Mourinho e o
jogador Cristiano Ronaldo. São portugueses e isto basta! Não
interessa se o primeiro é um manipulador que joga muito sujo, que
cria ruído e confusão por vaidade ou para desestabilizar
adversários. Alguém que carrega consigo a máxima “o fim
justifica os meios”. Também não interessa que o segundo seja
arrogante e egocêntrico inveterado. Mourinho autointitula-se Special
One e Ronaldo considera que é alvo de inveja por ser rico, bonito e
craque. Também não interessa que vivam suas vidas milionárias no
estrangeiro e estejam se borrifando para Portugal. O que interessa é
serem portugueses!
Seguindo
esta linha de raciocínio (ou falta dele), podemos facilmente
concluir que Salazar é um dos símbolos de orgulho do país. Afinal,
devido aos quase quarenta anos de ditadura, ele é, até hoje, uma
das personagens de Portugal mais famosas no mundo e pouco importa o
resto. Caráter? Oh! A nacionalidade o resume.
No
Brasil, o maior símbolo patriótico de culto à personalidade é
Pelé, o Rei, como é chamado. Pelé é um sujeito absolutamente
retrógrado e alinhado a o que há de pior na política e no
dirigismo desportivo brasileiro. O próprio Romário, outro simbolo
nacional, disse que ele calado era um poeta. Criticar o Rei enquanto
pessoa é aceitável, mas sugerir que outro jogador o superou ou o
supera é caso patológico. Não se aceita, sob hipótese alguma, que
Pelé não seja o melhor jogador de todos os tempos. Ontem, hoje e
sempre! Nunca haverá alguém melhor. Pelé é intocável, porque
tocar em Pelé é tocar no maior símbolo nacional do país. Assim
criam-se os mitos. Como bom antipatriota, faço questão de afirmar
que o Rei na verdade é súdito de Messi e Maradona. Sim, justamente
os dois argentinos. Muito do que se atribui a Pelé não passa de
produto da propaganda patriótica da ditadura militar. Da Pátria de
chuteiras, do ame-a ou deixe-a.
Como
cidadão do mundo que de fato sou, sem pátria e mesmo sem lar,
nego-me a limitar-me a uma ideia tão pequena e medíocre. A minha
maior aspiração na vida é atingir a plenitude do multiculturalismo
e desfazer-me de vícios e costumes provincianos. Não há nada mais
enriquecedor do que sair do próprio mundinho feito de dogmas e tabus
e enriquecer-se enquanto indivíduo livre de amarras e convenções
sociais limitadoras do ser. O patriotismo é uma amarra que cega e
impede o desenvolvimento da autocrítica. Seu antídoto é o
internacionalismo e a ideia de que somos cidadãos de um mundo vasto
e não podemos estar despojados da sua diversidade em nome de
conceitos obsoletos que glorificam infâmias coletivas.
Ao
longo da história, poucas pessoas públicas tiveram a coragem de
enfrentar o tabu e a superproteção do patriotismo. Se excluirmos os
anarquistas, antipatriotas por força da concepção
internacionalista do socialismo libertário e da negação da
autoridade, encontraremos apenas um pequeno punhado de personagens
meio que marginalizadas, embora célebres, como Oscar Wilde, autor
daquela que é, provavelmente, a mais famosa frase antipatriótica da
história e a quem parafraseio:
O
patriotismo é a virtude dos depravados.
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