Monday, June 16, 2014

A virtude dos depravados

Mesmo nas sociedades ocidentais, nos países mais abertos e com população mais esclarecida, há ideias ainda consideradas intocáveis ou superprotegidas. Alguns conceitos estão revestidos de um escudo permanente inquebrável, mesmo tendo um desconhecido fundamento para maioria das pessoas.

Eles chegam a beirar o dogmatismo e moldam comportamentos. A religião, felizmente, deixou de ser inquestionável, embora suas instituições continuem sendo injustificadamente superprotegidas.

A autoridade, a democracia representativa, o voto, o trabalho. Todos superprotegidos e praticamente imaculados. Questioná-los é quase considerado um desvio de caráter. Mas todos merecem análise cuidada. Todos podem ser desconstruídos à luz do que de mais avançado há na ética e na sociologia.

Mas mais do que os conceitos referidos ou que quaisquer outros, há um cuja proteção beira a intolerância e a total irracionalidade, além de ser substancialmente dogmático: o patriotismo.

Alguém já viu o patriotismo ser questionado? Não me refiro a falar mal do país de origem devido a uma crise, à corrupção dos políticos ou a maus resultados desportivos. Estou falando do conceito em si. Da ideia por detrás da palavra.

O patriotismo é uma das maiores aberrações criadas pela humanidade e continua aí, vigorando como se de algo sublime se tratasse. Em nome do patriotismo (nacionalismo, na variante ideológica) foram cometidas as maiores barbaridades ao longo de toda a história. Em nome dele e do provincianismo e bairrismo que despoleta, povos puseram-se uns contra os outros, travaram guerras sangrentas, tentaram justificar dominações, rapinagens e imperialismos. O patriotismo também é alavanca da xenofobia, do racismo e da eugenia.

Como uma ideia tão horrenda e violenta pôde permanecer mesmo nas sociedades mais avançadas como algo louvável, positivo e saudável? Em muitas partes do mundo ainda se mata e se morre por ela. Os países com mais anseios belicistas sequestram seus jovens e dizem-lhes que é motivo de orgulho morrer pela Pátria. Onde não há guerras, questões históricas de conflitos territoriais continuam alimentando rivalidades entre vizinhos. Na Europa podemos senti-las ainda hoje ao longo de todo o continente: Portugal e Espanha, França e Alemanha, Polônia e Lituânia, Hungria e Eslováquia, Itália e Eslovênia, Grécia e Turquia, Estônia e Rússia, Inglaterra e Escócia. E há muito mais. O que dizer da ex-Iugoslávia? Todas remetem a acontecimentos políticos de disputas de povos e territórios, mas ainda hoje suas feridas alimentam reações jingoístas e mesmo que muitas só sejam sentidas em larga escala no contexto desportivo, elas existem e continuam moldando as mentalidades. Pior do que isso é ver a aberração que se tornou a União Europeia. O pressuposto de uma estirpe comum é tão enganador quanto o nome da instituição, que celebra em seu seio um implacável banquete canibal.

Do outro lado do Atlântico, a Sul, há a estúpida guerrinha entre Brasil e Argentina, alimentada pela mídia de ambos os países no contexto futebolístico, mas que o transborda. No Brasil, todo mundo sabe que argentino não presta, que é inimigo. A explicação não vai além da raiva ao Maradona, ao Caniggia ou ao temível Boca Juniors, carrasco de clubes brasileiros na Libertadores da América.

Nos últimos anos os imigrantes bolivianos viraram alvo de xenofobia, enquanto os paraguaios recebem status de povo especialista em contrafação e são sinônimo de tudo o que é falso. Nós, brasileiros, somos nojentamente arrogantes em relação aos nossos vizinhos sul-americanos. Descarregamos neles toda a humilhação que nos é imposta pelos “gringos”.

E é assim mundo afora, aqui e acolá. Quem faz o contraponto ao rebanho jingoísta leva logo com o “argumento” do patriotismo. Dizem que devemos ter orgulho do nosso país, da nossa bandeira, da nossa história. Devemos proteger “os nossos”.

Eu faço questão de ir na contramão dessa ideia perversa. Em primeiríssimo lugar, é absurdo ter orgulho no acaso e o fato de termos nascido neste ou naquele país é fruto do mais puro acaso. Escolhemos onde nascemos? Népia! Em segundo lugar, não há absolutamente NADA para se orgulhar da nossa bandeira e do nosso passado enquanto nação. TODOS os países carregam sangue e terror em seus símbolos nacionais. Todas as bandeiras nacionais deveriam ter a cor vermelha. Nem que fosse apenas um pingo minúsculo. Se querem representar as fundações dos países em trapos coloridos, que o façam coerentemente. Não há países inocentes. Povos edificaram-se sobre outros povos, sempre carregando essa ideia de “nós”, de “nosso”. O país onde nasci, Brasil, tem um passado curto, mas o que há é tão vergonhoso quanto o presente. O caso de Portugal é ainda pior. A pátria lusitana tem uma história imperialista que é, incompreensivelmente, romantizada e glorificada no próprio hino nacional. Retirando toda essa cobertura alegórica, o passado de Portugal é tão bárbaro quanto o III Reich. Sim, é! Não adianta dizerem que não ou se sentirem ofendido com tal comparação. Os portugueses do período imperial rapinaram, chacinaram e escravizaram outros povos. Sim, os portugueses de há séculos fizeram isso, não os de agora. Vejam o lado positivo de aceitarem a realidade, afinal não tiveram nada a ver com aquela barbárie e não têm as mãos sujas de sangue, apenas exaltam símbolos encharcados. O que houve foi um genocídio contra os ameríndios e contra os africanos, que por sua vez se mataram entre si mediante disputas tribais e conflitos territoriais criados pelo imperialismo europeu. Tudo em nome do patriotismo. Do “nós” contra “eles”.

O patriotismo é tão grotesco que separa povos vizinhos para os unir a outros mais distantes. Só assim um catalão pode se sentir mais espanhol que francês. Só assim um trasmontano ou um minhoto podem estar mais próximos de algarvios do que de galegos. O que dizer dos brasileiros que habitam as longínquas fronteiras de toda extensão Norte e Oeste e só têm contato com o centro da cultura dominante brasileira através dos meios de comunicação massificados e estupidificantes?

É claro que há muito mais do que questões territoriais. Há traços culturais, como a língua, evidentemente. Mas mesmo esses traços foram moldados forçosamente no confinamento territorial dos povos e em muitos casos os assemelham muito mais a quem está do outro lado da fronteira do que a quem está noutras regiões de um mesmo quintal com cerca embandeirada, como dizia Raul Seixas. A Península Ibérica é um exemplo perfeito disso. Mas não pretendo adentrar em História. O conceito de patriotismo é o meu alvo e para sentir repulsa dele não precisamos recorrer ao passado, embora este a reforce substancialmente.

O que há de positivo no patriotismo? Como nos enriquece enquanto indivíduos ou mesmo coletivamente? Afinal, quem se beneficia dele além das elites políticas, militares e financeiras? Sim, mesmo as financeiras! Num mundo globalizado é importante que os rebanhos bradem pelos seus pastos. Assim, garante-se o jingoísmo festeiro. De que outra forma se consegue justificar a rapina de tanto dinheiro desviado para mega eventos desportivos? Como o parasitismo das elites seria sustentado? Não apenas monarcas designados pelo divino. Republicanos também. Como manteriam sociedades fortemente verticalizadas sem os lacaios da união nacional? O patriotismo consegue fazer os oprimidos aceitarem sua condição. É a maior garantia de paz social e é para isto que de fato serve. Tão comovente!

Numa Europa em crise, é importante unir os povos em torno de suas bandeirolas contra inimigos comuns estrangeiros. Para diminuir o perigo da aversão às instituições europeias passar às vias de fato, há sempre o apelo patriótico que vê no estrangeiro não europeu um bode expiatório perfeito. Não é por acaso que os períodos de crise despoletam mais xenofobia e mais evidência dos movimentos nacionalistas. Sempre foi assim. O Fascismo e o Nazismo foram alavancados por crises.

O mais curioso é notar a distinção que as pessoas fazem entre nacionalismo e patriotismo, quando o primeiro é apenas a manifestação político-ideológica do segundo. O fundamento teórico de ambos, que são um só, está assente na mesma ideia de Povo, Cultura, Identidade e Nação. Dizem que nem todo patriota é nacionalista. Claro que é! Todo patriota é nacionalista por definição. O que querem dizer é que nem todo patriota transforma o conceito em ideologia política. Felizmente!

Vou aludir a algo bem pessoal para refutar o patriotismo. Formalmente, sou brasileiro. Apesar de já não ter sequer passaporte ou identidade tupiniquim. Sou brasileiro por ter nascido no Brasil e não importa se vivo há quase 15 anos noutro lugar. Sou e sempre serei brasileiro. Assim quis o acaso e devo me orgulhar dele (?). Mas mesmo que nunca tivesse saído do Brasil, são muito mais as coisas que me separam da esmagadora maioria do povo daquele país do que as que de fato me unem a ele. Aliás, a minha repulsa pela sociedade e pela cultura dominante brasileira não é mais fraca do que a minha repulsa pelo patriotismo. O mesmo digo de Portugal, país onde vivi a maior parte da minha vida adulta até então. Os patriotas que me perdoem, mas se há um país com o qual eu me sinto identificado, é a República Checa, mesmo sem assimilar muito bem a cultura desses eslavos e ter problemas com o próprio idioma. Como me identifico? Sei lá! Foi o país que escolhi, acho-o bonito e interessante e isso para mim basta. Se tivesse que escolher entre Brasil, Portugal ou República Tcheca, os dois primeiros explodiriam. Se houvesse uma guerra e me obrigassem a lutar por um dos países contra os outros, eu marcharia em nome de São Nepomuceno. Mentira! Fugiria e deixaria que os lacaios se matassem em nome das elites e seus símbolos nacionais. Em sã consciência, nunca daria a vida por nenhum país. As bandeiras nacionais não valem mais do que meras peças decorativas.

Recordo-me dos meus primeiros esboços antipatrióticos. A Copa do Mundo é um período especialmente irritante no Brasil. Tudo se tinge a verde e amarelo e só se respira futebol. Em 1998, a Copa da França me fez despertar sentimentos inéditos em relação à seleção e ao “meu país”. Lembro-me especialmente do jogo das quartas-de-final entre Brasil e Dinamarca. Eu tinha, desde tenra idade, uma admiração inexplicável pela Dinamarca e pela Checoslováquia (optaria apenas pela República Tcheca após a divisão com a Eslováquia). Eram as minhas seleções de futebol favoritas e eu adorava futebol como ninguém. Respirava-o! Às vésperas do jogo comecei a perguntar-me por que raios deveria torcer pelo Brasil, se preferia a Dinamarca. Adorava o nome do país, dos jogadores e achava o uniforme vermelho muito mais belo. Por mais que quisesse sentir-me fiel à canarinha, meu coração pendia para o lado dinamarquês. E foi o que assumi. No dia do jogo pintei a bandeira dinamarquesa no rosto e sofri com a derrota por 3x2 para a seleção da CBF. Foi a minha primeira demonstração de antipatriotismo. Antes disso, recordo-me de assistir aos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, e vibrar pelas seleções brasileiras de vôlei e basquete perante comentários de reprovação de mãe e tia, que sempre torciam contra, argumentando que um país miserável e corrupto como o Brasil não merecia apoio. Eu não entendia patavinas daquilo, mas talvez a semente tenha ficado.

A partir de então, nunca mais torci pela seleção brasileira. Quando me mudei para Portugal, já simpatizava com o anarquismo (que é a única ideologia que combate o patriotismo) e a minha aversão à pátria passou a incluir também Portugal. O patriotismo português sempre me pareceu mais aberrante que o brasileiro por um motivo simples: enquanto o patriotismo brasileiro carrega uma roupagem festeira e alienante, configurando um puro jingoísmo de massas à deriva, o patriotismo português sempre me pareceu mais sério e carregado de um injustificável orgulho pelos absurdos do passado. Sempre me pareceu ser uma exaltação da raça, da identidade nacional e do imperialismo, termos arrepiantes que me dão náusea.

Desde os primeiros dias como imigrante reneguei o patriotismo português e fui visto como um arrogante ou como um colonizado complexado. As pessoas não compreendem nem aceitam a ideia de alguém estar-se borrifando para a Pátria. Certa vez, num dos grandes protestos contra a invasão do Iraque no Porto, um senhor veio perguntar-me o que significava a bandeira portuguesa cortada com um X no meu casaco. Respondi-lhe, na inocência da juventude, que era uma demonstração contra as fronteiras do mundo. O velhote irritou-se e encheu-me de insultos. Era, muito provavelmente, um membro do Partido Comunista Português. Semanas depois, noutra daquelas manifestações, pus uma bandeira portuguesa no meio da rua para os carros passarem sobre ela. Um dos carros parou à sua frente até que fosse removida dali, numa comovente demonstração de fidelidade a um símbolo nacional que naqueles dias estava sujo de sangue iraquiano.

Como imigrante antipatriota, enfrentei a fúria dos que não aceitam que um estrangeiro negue a sua pátria. Parece senso comum que uma pessoa só possa criticar o seu próprio país e respeitar incondicionalmente os símbolos nacionais dos demais. Eu nunca aceitei essa balela e nunca tive problemas em criticar Portugal para um português ou a República Tcheca para um tcheco. Não é uma questão de desrespeito gratuito. Simplesmente os símbolos nacionais não têm nenhum valor especial para mim e o conceito de patriotismo me dá asco, nojo. Como disse o escritor chileno Luís Sepúlveda, a palavra patriotismo deveria desaparecer do dicionário.

De todas as aberrações geradas pelo sentimento patriótico, talvez a mais detestável seja o apoio incondicional a pessoas conterrâneas, por mais execráveis que possam ser. Quem, em Portugal, não se recorda de Durão Barroso, o famoso cherne? O ex-Primeiro-Ministro português (também ex-maoísta reciclado politicamente a tempo para virar parasita neoliberal e lacaio de Bush) que abandonou um Portugal de “tanga”, como ele mesmo gostava de dizer, para chefiar a Comissão Europeia em Bruxelas com um salário chorudo, era respeitado e exaltado apenas por ser português. Diziam-me que era um orgulho tê-lo à chefia da uma instituição europeia. Orgulho? Como explicar isto? O sujeito encabeçou um governo catastrófico, arrastou Portugal, contra a vontade da população, para um conflito totalmente ilegal ao lado dos EUA, colocando o país na rota do terrorismo islâmico, desfez o governo e fugiu para Bruxelas para ganhar muito dinheiro. Orgulho desse imbecil? Sim, afinal ele é português e isto basta!

Mas é o futebol que gera mais culto irracional à personalidade. Em Portugal há duas pessoas endeusadas: o treinador José Mourinho e o jogador Cristiano Ronaldo. São portugueses e isto basta! Não interessa se o primeiro é um manipulador que joga muito sujo, que cria ruído e confusão por vaidade ou para desestabilizar adversários. Alguém que carrega consigo a máxima “o fim justifica os meios”. Também não interessa que o segundo seja arrogante e egocêntrico inveterado. Mourinho autointitula-se Special One e Ronaldo considera que é alvo de inveja por ser rico, bonito e craque. Também não interessa que vivam suas vidas milionárias no estrangeiro e estejam se borrifando para Portugal. O que interessa é serem portugueses!

Seguindo esta linha de raciocínio (ou falta dele), podemos facilmente concluir que Salazar é um dos símbolos de orgulho do país. Afinal, devido aos quase quarenta anos de ditadura, ele é, até hoje, uma das personagens de Portugal mais famosas no mundo e pouco importa o resto. Caráter? Oh! A nacionalidade o resume.

No Brasil, o maior símbolo patriótico de culto à personalidade é Pelé, o Rei, como é chamado. Pelé é um sujeito absolutamente retrógrado e alinhado a o que há de pior na política e no dirigismo desportivo brasileiro. O próprio Romário, outro simbolo nacional, disse que ele calado era um poeta. Criticar o Rei enquanto pessoa é aceitável, mas sugerir que outro jogador o superou ou o supera é caso patológico. Não se aceita, sob hipótese alguma, que Pelé não seja o melhor jogador de todos os tempos. Ontem, hoje e sempre! Nunca haverá alguém melhor. Pelé é intocável, porque tocar em Pelé é tocar no maior símbolo nacional do país. Assim criam-se os mitos. Como bom antipatriota, faço questão de afirmar que o Rei na verdade é súdito de Messi e Maradona. Sim, justamente os dois argentinos. Muito do que se atribui a Pelé não passa de produto da propaganda patriótica da ditadura militar. Da Pátria de chuteiras, do ame-a ou deixe-a.

Como cidadão do mundo que de fato sou, sem pátria e mesmo sem lar, nego-me a limitar-me a uma ideia tão pequena e medíocre. A minha maior aspiração na vida é atingir a plenitude do multiculturalismo e desfazer-me de vícios e costumes provincianos. Não há nada mais enriquecedor do que sair do próprio mundinho feito de dogmas e tabus e enriquecer-se enquanto indivíduo livre de amarras e convenções sociais limitadoras do ser. O patriotismo é uma amarra que cega e impede o desenvolvimento da autocrítica. Seu antídoto é o internacionalismo e a ideia de que somos cidadãos de um mundo vasto e não podemos estar despojados da sua diversidade em nome de conceitos obsoletos que glorificam infâmias coletivas.

Ao longo da história, poucas pessoas públicas tiveram a coragem de enfrentar o tabu e a superproteção do patriotismo. Se excluirmos os anarquistas, antipatriotas por força da concepção internacionalista do socialismo libertário e da negação da autoridade, encontraremos apenas um pequeno punhado de personagens meio que marginalizadas, embora célebres, como Oscar Wilde, autor daquela que é, provavelmente, a mais famosa frase antipatriótica da história e a quem parafraseio:


O patriotismo é a virtude dos depravados.

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