Thursday, February 20, 2014

A velocidade supersônica da verdade...e da mentira.

Há vinte anos atrás, toda a informação que a sociedade consumia estava condicionada às peneiras da grande mídia tradicional: um punhado de canais televisivos, emissoras de rádio e jornais e revistas de grande circulação. Todos esses veículos eram (e ainda são) controlados por um número muito limitado de grupos empresariais diretamente interessados no teor das notícias. Desde então, e sobretudo a partir da virada do milênio, foi surgindo um novo meio que acabaria por revolucionar toda a comunicação das sociedades tecnológicas: a Internet. No entanto, o potencial, digamos, libertador desse novo veículo foi rapidamente percebido pelos grandes grupos das telecomunicações, que passaram a utilizá-lo como uma mera extensão dos veículos tradicionais. Ainda assim, foi possível enfraquecer os grandes oligopólios da mídia e criar alternativas à veiculação de notícias padronizadas e formatadas. Um pouco por todos os lados, e acompanhando determinados ativismos que necessitavam criar seus próprios meios de difusão, surgiram infinidades de sítios informativos, inicialmente em forma das páginas (sites) e mais recentemente em múltiplos formatos, como os jornais online, os canais televisivos do Youtube e os grupos das redes sociais. A informação descentralizou-se, pelo menos para quem estava atento, porque os grandes grupos continuaram dominando a maior parte da informação e a televisão continuou sendo a principal janela para o mundo da maioria da população.

A descentralização da mídia e a profusão de veículos alternativos foram grandes vitórias para os que sempre se embateram contra os oligopólios do setor e exigiram a sua democratização, e apesar das vitórias em termos materiais terem sido pequenas, o fato é que as alternativas aos grandes grupos reforçaram-se ao ponto de não apenas servirem como veículos de informação paralela, mas também como sistemas de vigilância às potenciais mentiras e manipulações da grande imprensa. E o que inicialmente se restringia a certos ativismos políticos e grupos ideológicos fora do mainstream foi se espalhando e se tornando uma realidade a ser levada em conta.

Hoje, qualquer pessoa com acesso à Internet e com algum discernimento em relação aos diversos interesses que regem a sociedade pode estruturar suas opiniões com base na compreensão de diferentes pontos de vista. Provavelmente, a maior profusão de informação teve lugar no campo político e ideológico e os embates permaneceram ríspidos, mas muito mais justos, porque a disparidade dos meios disponíveis diminuiu. Há vinte anos, no Brasil, a totalidade dos meios de comunicação estava nas mãos de setores conservadores (incluindo a Igreja Católica e a Protestante), da direita política e de grupos empresariais. Contava-se nos dedos o pequeno número de publicações ligadas, sobretudo, a movimentos sociais de esquerda. A tiragem dessas publicações era insuficiente e tinha dificuldades até para abranger os seus próprios contingentes. Atualmente, a grande imprensa continua nas mesmas mãos, mas a Internet permitiu uma difusão muito maior das ideias tradicionalmente marginalizadas e elas se fazem ouvir.

O grande auge do poder da imprensa independente e alternativa, que está acontecendo neste momento, surgiu durante as chamadas "Jornadas de Junho" com as gigantescas manifestações por todo o Brasil. A grande mídia fez a sua tradicional cobertura e foi claramente ridicularizada pela mídia ativista, que expôs todas as mentiras e manipulações que há vinte anos não eram nitidamente detectadas. O poder das imagens era absoluto nos anos noventa. Ninguém se punha a questioná-las. Uma imagem era uma prova por excelência. Hoje, graças à imprensa alternativa, sabemos muito bem que as imagens podem ser perfeitamente adaptadas a uma certa retórica e uma certa linha editorial. E também sabemos que qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de softwares de audiovisuais pode fabricar provas das suas próprias versões da realidade.

Mas nem tudo pode ser comemorado. A política e as divergências ideológicas são poderosas cargas emocionais e ninguém está alheio a elas. Se por um lado os novos veículos de informação serviram para desmentir os tradicionais e equilibrar as forças, por outro lado eles também estão sendo utilizados para a difusão de mentiras e de montagens segundo certas conveniências. E ninguém escapa a isto. Ninguém! Todos nós, que participamos de alguma forma em debates e dinamizamos os nossos próprios canais informativos, somos culpados e ajudamos a tornar a mentira no maior produto da informação supersônica, ao lado da verdade - ambas estão misturadas e é preciso saber discernir para identificá-las sem confundi-las. A maioria das pessoas (sobretudo quem possui convicções ideológicas mais profundas) está absolutamente convencida de que a nobreza das suas ideias justifica a fabricação de mentiras contra os opositores, representantes invariáveis de tudo o que é mau. A verdade não é nada perante a necessidade de impor uma ideia a qualquer custo, e todos os lados dos embates políticos se tornaram experts em mentiras, difamações e acusações superficiais. A ética ficou remetida aos bobos, aos ingênuos, aos "reformistas" e traidores, até.

Mas a mentira não é o único problema. Tão grave quanto ela é a desonestidade intelectual estampada em linhas argumentativas e retóricas que estraçalham os limites da coerência e se alimentam na ignorância e incapacidade de discernimento de uma maioria que migrou para os novos meios de comunicação mas mantém a mesma postura de quando era telespectadora hipnotizada. Essa massa heterogênea está disposta a aceitar qualquer manchete e qualquer notícia como verdade absoluta desde que digam o que elas querem ouvir ou ler. Todos nós, em algum momento, já fomos vítimas ou responsáveis por alguma mentira. E todos nós também já fomos vítimas das nossas próprias mentiras e nos auto-enganamos em nome de certas conveniências (é muito difícil admitirmos um erro ou uma linha de raciocínio equivocada, somos demasiado orgulhosos). É altamente provável que voltemos a fazê-lo, mas é importante que nos livremos desta dinâmica para que sejamos honestos tanto quanto possível. Quando, num debate, acusamos um opositor de difundir mentiras, devemos simultaneamente analisar a nossa própria postura. Uma coisa é certa: quem mente ou difunde mentiras convenientes não tem moral nenhuma para criticar ou desmascarar oponentes que fazem o mesmo. Nenhuma! Não existe nenhuma ideologia suficientemente nobre para se sobrepor ao valor da verdade e da honestidade. As ideias tornam-se nobres à medida em que são construídas com base na verdade, e não o contrário.

Para exemplificar um pouco, basta utilizar algumas notícias veiculadas nas últimas semanas e que demonstram bem que existe uma guerra informativa baseada em antigas dicotomias. Quando a morte do cinegrafista Santiago Andrade foi confirmada, rapidamente se espalhou a notícia, nos meios alternativos, de que havia um elemento infiltrado com traços físicos que não correspondiam ao rapaz acusado e ela foi utilizada para a fabricação de inúmeras montagens por parte de quem dizia serem provas de algum rolo obscuro. Eu próprio cheguei a acreditar nisso num dado momento e precisei ouvir a voz da minha consciência para fazer uma investigação mais profunda e adequada antes de espalhar aquilo. Ficou então provado que havia dois rapazes com roupas semelhantes, mas que o sujeito acusado e preso era, de fato, o que portara o rojão responsável pela tragédia. 

Por outro lado, os protestos que ocorrem na Venezuela nos têm oferecido inúmeras imagens de pessoas brutalmente violentadas pela polícia. Tais imagens seriam verdadeiramente relevantes e reveladoras caso não fossem provenientes de outros protestos em vários países bem distantes da América do Sul. Há, sim, brutalidade policial na Venezuela de Maduro, como também há uma clara tentativa da parte da oposição controlada por Leopoldo López de perpetuar um golpe de estado. A própria oposição mais tradicional está assustada com a figura de López.

De Kiev em chamas surgiu um video com o apelo emotivo de uma bela moça ucraniana que, num inglês comovente, clama aos povos do mundo para que espalhem a mensagem e ajudem o povo ucraniano na luta pela liberdade e pela democracia. Não sei quem é a moça e não quero fazer associações precipitadas, mas seu discurso não pode ser digerido exclusivamente como se resumisse tudo o que se passa na Ucrânia. Ele é absolutamente superficial e esconde uma realidade muito mais complexa que envolve um conflito geopolítico entre EUA-União Europeia de um lado e a Rússia de outro, e as preocupações de ambos os lados são os seus acordos comerciais e a influência da região. Além disso, a vanguarda dos protestos em Kiev é controlada por grupos neonazistas, como o partido Svoboda e os simpatizantes de Stepan Bandera, o ucraniano que lutou por Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Antes de difundirmos uma causa, precisamos estar minimamente informados sobre tudo o que a envolve.

Apesar de achar que podemos mitigar o problema da difusão (muitas vezes involuntária) de mentiras, é evidente que só será possível alcançar um certo sucesso, e mais importante do que exigir honestidade aos outros é assumirmos uma postura honesta e preocupada com a vasculha da verdade. Dentro do debate político dos meios alternativos de informação há os grupos que se propõem à intransigência e têm como único motivo de existência o combate histérico que não supera a superficialidade dos chavões e clichês. Esses grupos se sustentam na nobreza das suas ideias para assumirem a negação da racionalidade e não abrirão qualquer brecha ao desenvolvimento ético e responsável do debate político. Não estão interessados em exercícios argumentativos ou em ponderações equilibradas que construam opiniões coerentes. Limitar-se-ão à gritaria e à mera catarse. Perante esses, não resta mais nada que não o desprezo, porque não constituem oponentes ou aliados para quem procura desenvolver ideias. São fontes que jorram vácuo, digamos.

Exemplos disso são os fanáticos militantes do PT, por exemplo, que pegam em qualquer dado estatístico para esfregar na cara do mundo inteiro que seus políticos de predileção são infalíveis e absolutamente honestos. São os que ilibam os condenados pelo Mensalão apenas por uma questão de compatibilidade ideológica. Também são os que não dizem uma única palavra sobre os escândalos de corrupção da oposição enquanto difundem qualquer vírgula que represente uma crítica mínima ao PT. São os que chamam os manifestantes mascarados das ruas brasileiras de vândalos assassinos e que se derretem em elogios aos mascarados venezuelanos ou aos ucranianos. São os que endossam os protestos encarniçados no Brasil enquanto pedem aos berros que os que fazem o mesmo na Venezuela sejam espancados e presos pela polícia. 

Não sei se é uma impressão minha ou se é uma realidade, mas parece-me que o mundo (ou pelo menos o Ocidente) vai voltando à bipolarização da Guerra Fria e os debates se tornam cada vez mais limitados à velha dicotomia, ignorando a extrema complexidade que cada problema carrega. Nem todo esquerdista é bolivarianista, nem todo indivíduo nas ruas de Caracas é fascista, nem todo ucraniano odeia os russos, nem todos os russos acham que os ucranianos devem ser subalternos e nem todos aqueles que querem despregar a Ucrânia da Rússia são aliados da política externa dos EUA. 

Não estou tentando empurrar a discussão política a um centrismo neutro e esvaziado de ideologias, de forma alguma. Eu próprio me identifico com uma ideologia radical (no caso, para lá da esquerda), que é o anarquismo. Percebam que utilizo a palavra "radical" como significando a busca pela raiz das questões, não como sinônimo de extremismo. E por me identificar com o anarquismo não sou obrigado a concordar e ser conivente com as mentiras, manipulações e ilações superficiais ou resultantes de falácia ou falhas argumentativas que existem e são difundidas pelos meus próprios "companheiros". Aliás, nalgum momento seremos atingidos pelos estilhaços da nossa própria desonestidade, porque o seu fruto será a nossa arma em algum debate e os opositores poderão percebê-la e utilizarem-na contra nós, inclusive ridicularizando-nos. Por isso devemos ter todo o interesse em combater posturas destrutivas dentro dos nossos círculos. Quem inventa mentiras está induzindo os próprios companheiros ao erro. Limitar-se a um gueto ideológico causa cegueira e incentivar a cegueira é burrice, porque não eleva os debates a níveis verdadeiramente construtivos que possibilitem uma visão ampla e esclarecida dos fenômenos abordados. Mesmo com o advento dos meios alternativos de informação, é necessário aceder (com postura crítica) aos meios convencionais para que possamos compreender, enquadrar e esmiuçar os diferentes pontos de vista e procurar desconstruí-los com o constante exercício racional. Chavões e palavras de ordem servem para reforçar a disposição e dar ânimo, mas não servem como argumentos quando nos debruçamos sobre assuntos que exigem discernimento e reflexão coerente.

Vivemos numa época em que a velocidade das notícias é supersônica e diariamente somos confrontados com dezenas de assuntos. Essa velocidade nos permitiu o acesso amplo à informação, mas também nos tem impedido de pensar com cuidado e, sobretudo, com honestidade. O acesso aos meios de comunicação mais democratizados deve ser melhor utilizado. Temos a possibilidade de enriquecermos-nos intelectualmente e de termos uma visão equilibrada do mundo. Temos a possibilidade de não sermos manipulados e também de não manipularmos a ninguém, incluindo a nós próprios.

Isto não é um apelo à imparcialidade, afinal ela não existe. Somos, todos, parciais em algum grau. Mas é possível sermos parciais e ao mesmo tempo honestos, tolerantes e ponderados. É preciso ponderar, sim, e é preciso saber admitir erros.

Enquanto justificarmos todos os meios em nome das ideias, a nossa capacidade de amadurecimento intelectual continuará sendo destroçada pela velocidade supersônica da verdade e da mentira.

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